Quando Terry Gilliam começou a trabalhar em O Homem que Matou Dom Quixote, uma das produtoras tinha aproximadamente 11 anos. Era a filha de Gilliam, Amy, que hoje tem 41.
O filme é provavelmente um dos projetos pessoais mais azarados da história: em um espaço de três décadas, Gilliam, hoje com 78 anos, passou por concessões e cancelamentos de financiamento, um elenco rotativo que contou com integrantes tanto comprometidos quanto descompromissados e uma inundação brutal que destruiu um set inteiro. Um documentário sobre o fracasso do filme — Perdido em La Mancha, de 2002 — foi finalizado antes do filme em si.
Mas, finalmente, O Homem que Matou Dom Quixote não é mais apenas um projeto, mas uma obra finalizada que, após estrear no Festival de Cinema de Cannes de 2018, fez seu debut nos Estados Unidos, no dia 10 de abril, em exibição única em 700 salas por todo o país, antes do lançamento no circuito comercial, ainda sem data confirmada.
O próprio Gilliam, em seu esforço para fazer o filme, foi comparado a Quixote, mas ele enxerga de outra forma:
— O filme é Quixote. Sou Sancho Pança, porque sou o cara que conduz a situação. Estou com os pés no chão a maior parte do tempo — declarou em Londres.
O filme é Quixote. Sou Sancho Pança, porque sou o cara que conduz a situação. Estou com os pés no chão a maior parte do tempo.
TERRY GILLIAM
diretor de cinema
Apesar de não ter percorrido o trajeto sozinho, a maior parte das companhias mudou ao longo do caminho. Apenas poucas pessoas envolvidas com o resultado final estavam presentes na primeira tentativa de filmagem em 2000: entre elas, a filha; o coautor Tony Grisoni; o diretor de fotografia Nicola Pecorini; e o designer de produção Benjamín Fernández. O figurino criado para o personagem Quixote da produção original foi o usado na versão final.
Em entrevistas, aqueles que permaneceram ao lado de Gilliam em todo o processo poderiam ser descritos como os Sancho Panças do diretor: na mesma medida fiéis e perplexos pelo fato de Gilliam perseverar mesmo diante das mais desafiadoras circunstâncias.
O diretor tinha um roteiro em mãos escrito no fim dos anos 80 com Charles McKeown, um de seus colaboradores em Brazil, o filme (1985), mas não era exatamente o que queria. Chamou, então, Grisoni, roteirista britânico, para ajudá-lo a reescrever o material. Os dois já tinham adaptado outro livro para as telas, para o filme Medo e Delírio, de 1998, mas Grisoni não estava seguro sobre fazer o mesmo com Dom Quixote.
— São dois volumes fantásticos. Talvez nem todo livro devesse virar filme. Isso é uma heresia? Sei o que é heresia no universo cinematográfico. Mas, às vezes, um livro pode simplesmente ser deixado em paz — argumentou.
Mesmo assim, a ideia de Gilliam de transformar o Dom Quixote em uma história contemporânea atraiu Grisoni. Com Johnny Depp e o ator francês Jean Rochefort nos papéis principais, as filmagens começaram em 2000, com uma expedição desastrosa para a Espanha. Rochefort precisou desistir devido a problemas de saúde e a produção era rotineiramente afetada por trovões, enchentes e aeronaves de uma base próxima da OTAN sobrevoando baixo o local. Os cineastas desistiram após uma semana.
Contudo, Gilliam passou quase mais duas décadas tentando realizar o projeto.
— Em parte, porque todo mundo dizia: "Esquece, parte para outra". Acho que isso é o que mais me move. Não gosto que pessoas sensatas me recomendem que eu seja sensato — confessou Gilliam.
Grisoni contou que Gilliam, várias vezes ao ano, pedia que ele trabalhasse no roteiro. Michael Palin – companheiro de Gilliam no Monty Python –, Robert Duvall e John Hurt estavam entre as estrelas escaladas durante esses anos, mas nenhum deles continuou. (Gilliam dedicou o filme a Hurt e Rochefort, que morreram em 2017.) O financiamento, aprovado na primeira versão, deixou de ser certeza durante as primeiras revisões, foi restabelecido para a versão com Depp e cancelado repetidas vezes depois.
Conforme recorda Pecorini, outro integrante de Medo e Delírio, desde a assinatura do contrato foram doze tentativas de fazer o filme. Em todas elas, relatou em uma entrevista, estava "totalmente cético". Contudo, complementou, ele tem profunda afeição pelo projeto e por Gilliam:
— Amo trabalhar com Terry. Ele me deixa louco, mas eu amo.
A última rodada de filmagens, finalizada em 2017, foi tranquila.
— Sem vestígios da ira de Deus — confirmou Pecorini.
A versão que chegou à telona tem Jonathan Pryce como Dom Quixote, um homem delirante mas cavalheiresco de La Mancha que parte em busca de tornar-se um herói, como descrito no romance do século XVII de Miguel de Cervantes. A história de Gilliam se desenvolve na atualidade: Toby, interpretado por Adam Driver, é um egocêntrico diretor de filmes publicitários que, anos depois de escalar um sapateiro espanhol para o papel de Quixote em um filme estudantil, retorna à Espanha e descobre que o homem, interpretado por Pryce, acredita ser realmente Quixote. Ele chama Toby para ser seu fiel escudeiro, Sancho Pança. (Sancho é crucial no relato da história, traçando o limite entre o que é real e o que é oriundo da mente fantástica de Quixote.)
A produção revivificada não esteve ilesa de problemas. O governo português investigou acusações de que um local considerado Patrimônio Mundial pela Unesco, o Convento de Cristo, uma construção do século XII localizada na cidade de Tomar, sofrera danos durante as filmagens, fato que Gilliam nega veementemente. Um antigo produtor do filme, Paulo Branco, se desentendeu com o diretor, entrou com uma ação exigindo direitos de propriedade sobre a obra e tentou impedir a estreia em Cannes. Um tribunal de Paris decidiu que o filme poderia ser exibido como planejado.
E, com isso, uma empreitada que ocupou quase metade da vida de Gillian chegou ao fim. Agora, ele está lutando contra um novo monstro imaginário: a forma como estão lidando com o lançamento do filme.
— A estratégia de lançamento em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, não me convenceu. Algumas pessoas me disseram que, se você tem um filme de um grande estúdio com milhões para gastar, essa tática de uma exibição por todo o país funciona. Não sei. Vamos descobrir. Estou no meio de tentar convencer esses caras a promover o filme adequadamente — esclareceu Gilliam.
No entanto, Gilliam confessou estar exausto e, pela primeira vez em 30 anos, sem nada para fazer. Assim ele falou a respeito de ter terminado o filme:
— Entrava em uma depressão pós-parto e, invariavelmente, havia algo esperando. Tinha um pequeno Quixote lá no canto acenando para mim. "Ei, vamos tentar mais uma vez!" Era algo que me fazia prosseguir. E, agora, estou sentindo algo que nunca experimentei: simplesmente não tenho a menor ideia do que fazer.