Nem sempre se pode chegar à verdade dos números sem uma análise mais detalhada. Peguemos o cinema brasileiro, por exemplo. Segundo o recente balanço anual do Filme B, portal especializado na análise do mercado cinematográfico, foram exibidos em 2018 no circuito 177 títulos nacionais, que venderam mais de 24 milhões de ingressos, 30% a mais do que em 2017. Uma boa performance, diante da queda geral de 10% no mercado exibidor no país — foi a segunda melhor marca histórica do produto local, atrás do recorde de 2016 (30,1 milhões de ingressos).
Mas é também uma performance preocupante. A percepção positiva do quadro geral está fortemente impactada por apenas um filme, o drama religioso Nada a Perder, que responde por metade desse desempenho. Em meio à discussão em torno da alta concentração do mercado em poucos títulos e das distorções de um circuito exibidor cada vez mais voltado a blockbusters, Nada a Perder provocou controvérsia com seus 12 milhões de ingressos vendidos – tornou-se o novo recordista de público do cinema brasileiro. Houve relatos de salas exibindo o drama biográfico sobre o empresário e líder religioso Edir Macedo sem espelhar na plateia as entradas comercializadas.
— 2018 foi atípico — diz Paulo Sérgio Almeida, diretor do Filme B. — Desde 2015, as maiores bilheterias nacionais vinham sendo comédias. No ano passado, tivemos também sucessos focados no perfil infantojuvenil e familiar, como Fala Sério, Mãe e Tudo por um Pop Star. Os anos de recessão culminaram em um estresse político que fez um filme como O Candidato Honesto 2 não ir tão bem. Mas foi uma forçação de barra a proposta de fazer o brasileiro zombar dele mesmo nesse momento.
Almeida aponta um 2019 promissor. A razão é a entrada em cena de dois pesos pesados da comédia brasileira. Um deles, Paulo Gustavo, está em cartaz desde o final de dezembro em, que soma mais de 4 milhões de espectadores, e ainda tem na manga Minha Mãe é uma Peça 3, para dezembro. O primeiro filme da franquia somou 4,62 milhões de ingressos, o segundo estourou o caixa com 9,2 milhões, e o humorista ainda emplacou pelo caminho Vai que Cola – O Filme, com 3,3 milhões de entradas.
A outra é Ingrid Guimarães, que apresenta, em abril, De Pernas pro Ar 3 (os outros dois somam mais de 8,2 milhões de espectadores). E dia 21 de fevereiro chega aquele que, segundo Almeida, “vai estourar”: Sai de Baixo, adaptação do humorístico sucesso na TV.
— Vai ser o ano da comédia. E ainda há dois fortes concorrentes no segmento infantojuvenil, Turma da Mônica e Detetives do Prédio Azul 3 — diz Almeida.
Para a jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano, integrante da Associação brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), levar em conta Nada a Perder no balanço de 2018 distorce a análise de um resultado preocupante.
— Os ingressos são doados a parcelas grandes de fiéis. Sem falar na questão de que não há verificação de que tais ingressos foram realmente utilizados. Este tipo de filme nem deveria ser computado. Para mim, os resultados de 2018 são desesperadores e se devem, em especial, à crise econômica. Menos gente buscando o cinema como forma de lazer, ingressos altos, estacionamento e pipoca idem. Se as comédias, gênero que mobiliza público no mundo inteiro, tiveram quedas brutais em suas bilheterias, imagine o que se passou com os filmes de empenho artístico-cultural. Como explicar que Chacrinha tenha feito menos público (36 mil) nos cinemas do que no teatro?
Dificuldades dos documentários
Maria do Rosário destaca um outro fenômeno: Halder Gomes, diretor do Ceará cujos filmes costumam alcançar 500 mil espectadores no mercado regional.
— Aposto na Chibata Sideral, do Halder Gomes, mesmo que o Ceará, onde ele costuma arrebentar, esteja atravessando crise econômica e de segurança. Espero que a (cinebiografia) Simonal faça pelo menos a metade do público de Elis, este com quase 600 mil. De Pernas Pro Ar 3 leva os personagens a Paris. Existe uma hipótese de que um filme com nome de cidade famosa no título aumenta o público. Claro que Minha Mãe é uma Peça 3, com Paulo Gustavo, na pele de Dona Hermínia, assistindo ao casamento homoafetivo do filho, deve ser o recordista. Mas está previsto para dezembro e o grosso de sua bilheteria será colhido no verão de 2020.
Almeida faz uma observação em relação à presença dos documentários no circuito.
— Desse 177 filmes exibidos, 75 foram documentários, sendo o de maior público O Processo, sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff (65,9 mil). Tem filmes desse gênero que não são para o cinema. Se não é um (Eduardo) Coutinho, se não tem grande pretensão estética e narrativa, está no lugar errado. Acho que isso tende a diminuir.
Maria do Rosário contrapõe:
— Creio que os produtores e diretores de documentários usam a tela grande como vitrine para seus filmes. Ganham um registro nos jornais e, às vezes, uma crítica. Se fossem direto para a TV, cairiam num labirinto de milhares de títulos. Ano passado, o doc de Guta Ramos, do impeachment de Dilma (O Processo), fez mais público que superproduções como Chacrinha e O Grande Circo Místico (51,5 mil espectadores).
Cabe destacar que a projeção de números do cinema brasileiro para 2019 terá de adicionar novamente um ingrediente com peso considerável na fórmula: dia 18 de abril estreia Nada a Perder 2.