Em seu segundo filme solo na direção, a cineasta Daniela Thomas apresenta em O Banquete um jantar no qual é exposto o pior lado de seus convidados, revelando-se seus jogos de poder e sedução. O longa estava previsto para ser exibido no 46º Festival de Cinema de Gramado, mas foi retirado da mostra após a morte de Otávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo, que inspirou o personagem Mauro (Rodrigo Bolzan).
Antes de O Banquete, ela dirigiu Vazante (2017) e participou de projetos em parceria com Walter Salles (Terra Estrangeira, de 1995; Linha de Passe, de 2008) e Felipe Hirsch (Insolação, de 2009).
Em entrevista a Zero Hora, Daniela fala sobre o processo de produção de O Banquete, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (13).
O Banquete é um filme muito intenso, bastante calcado no diálogo, amparado por planos-sequência. Como foi a concepção deste projeto?
Nasceu do desejo de recriar as conversas que ouço desde pequena e que acho incríveis, reveladoras, cheias de ironia, sedução, e que nunca vi transpostas para a cena aqui no Brasil. Do desejo de enredar o espectador nessa conversa, forçando-o a tomar partido, deixando-o tão tenso quanto os personagens. E da paixão pelos filmes do John Cassavetes (cineasta americano), e do que ele consegue retirar de seus incríveis atores.
De que maneira a sedução entre homens e mulheres do filme reverbera discussões atuais sobre as dinâmicas entre os sexos?
O que tentei reproduzir em O Banquete é uma dinâmica erótica entre homens e mulheres que usam a sedução como moeda de troca. Uma dinâmica que está sob intenso ataque hoje, mas que vive uma evidência só comparável talvez à da publicação do Ligações Perigosas, no século dezoito, na França. Sexo e poder estão na ordem do dia. É só lembrar a gravação do Trump durante a campanha, bravateando sobre como tinha a mulher que quisesse, quando quisesse, "by her cunt". O mesmo candidato que derrotou a mulher mais graficamente traída dos últimos tempos, Hillary Clinton. E lembrar também que Harvey Weinstein, por exemplo, o inquestionável rei de Hollywood desde os anos 90, esteve imbricado por todo esse tempo – molestando e estuprando por aí, sem que nada transparecesse – na vida e na carreira das maiores estrelas. Há também as denúncias de assédio por aqui, somando-se a cada dia. Sexo e poder. Poder e sexo. Quando comecei a escrever O Banquete, há mais de vinte anos, a sensação de círculo vicioso das relações entre os sexos era frustrante e parecia um destino inescapável, apesar das lutas incansáveis das feministas. A verdade é que as coisas mudaram: acredito que a hegemonia do desejo andro-eurocêntrico, que nos trouxe de Medeia (personagem da mitologia grega) até aqui está sofrendo baques sentidos. A própria ideia de uma humanidade binária está sendo desafiada com potência. Sinto que conceitos acerca de gênero e orientação sexual estão mudando numa velocidade incrível. É um momento pulsante.
Que tipo de mulheres você procurou retratar em O Banquete?
Mulheres fortes, capazes, talentosas, inteligentes mas que deixam-se medir pela estima, pelo desejo que os homens têm por elas. São mulheres incríveis mas, que estão, como diz o filósofo Adorno, "capturadas pela lógica masculina", sequestradas em relações neuróticas e dependentes. Fui testemunha, algoz e vítima de situações semelhantes às que retrato em O Banquete. Venho de uma linhagem de mulheres que viveram às voltas com essas questões por muitas décadas. Mas posso dizer que muitas de nós estão aprendendo a viver fora desse círculo vicioso, e que ele já não é mais um círculo fechado. E o desaparecimento completo desse círculo me parece um caminho sem volta.
Drica Moraes entrega uma performance vigorosa no filme. Como foi o seu trabalho com ela e o restante elenco?
Acho que fizemos um belo trabalho de casting, acima de tudo. São atores excepcionais e inteiramente dispostos a enfrentar os desafios que o projeto impunha de cara. As vaidades foram logo abandonadas e os mergulhos nos personagens foram absolutos. Na minha proposta a eles, não havia descanso: foram filmados planos-sequência de no mínimo meia hora. Várias vezes por dia. Definimos que, mais importante do que a fala, seriam as reações dos personagens ao que está sendo dito. O processo de ensaio também foi muito rico, com a contribuição de todos na adequação dos diálogos, no exercício de lembrar de situações vividas ou presenciadas. Todos me ajudaram e se ajudaram muito, o tempo todo. Drica Moraes é uma sumidade. Desde que eu a vi, há décadas, fazendo um papel de má numa novela do Walter Avancini, a Xica da Silva, pus na cabeça que algum dia ia trabalhar com ela. O embate entre Drica, Mariana Lima e Fabiana Gugli é uma das grandes emoções da minha vida.
Como o personagem Mauro foi construído? O que há nele da personalidade do Otávio Frias Filho?
O Mauro é o meu McGuffin, sabe aquele dispositivo dramatúrgico que o Hitchcock nos ensinou? Quando se necessita de uma trama para movimentar a ação, usa-se esse dispositivo. No caso do Banquete: uma carta-aberta ao presidente, uma ameaça de prisão. A figura pública de Otávio foi realmente uma das inspirações do personagem do Mauro, que eu precisava que fosse ao mesmo tempo um homem poderoso, um intelectual, mas que não fosse um macho alfa típico, daqueles que entram numa sala e alteram a química do lugar. Queria quase anti-herói: o intelectual tímido, de pouquíssimas palavras, escondido atrás dos óculos de aro grosso, e que é, no entanto, um dos homens mais poderosos do país. O oposto da figura do presidente da época. Mas nem por isso menos sedutor. Essa imagem foi importante para a construção do jeitão do meu personagem, mas as coincidências com a vida do verdadeiro Otávio acabaram aí para mim.
Como era a sua relação com Otávio Frias Filho?
Nos vimos algumas poucas vezes, em situações sociais, nos trinta anos que vivo em São Paulo. Não tivemos uma relação de amizade, mas eu o admirava e sei que ele gostava do meu trabalho. Não sei muita coisa sobre sua vida pessoal e não fiz pesquisa para criar situações que a refletissem.