A morte de Marcus Vinícius da Silva, estudante de 14 anos baleado durante uma operação da Polícia Civil no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, uma semana atrás, reforça uma estatística sem paralelos no mundo, até mesmo em zonas de conflito: a morte de jovens brasileiros tragados por um ciclo de violência que enreda questões complexas que vão da imensa desigualdade social que cinde o Brasil à negligência dos agentes políticos e à desvalorização e despreparo das forças de segurança pública.
Em cartaz a partir desta quinta-feira em Porto Alegre, o documentário Auto de Resistência, vencedor do prêmio de melhor filme nacional no Festival É Tudo Verdade 2018 – o mais importante voltado ao gênero na América Latina –, ilumina de forma impactante uma das peças que compõem esse sangrento mosaico brasileiro, construído sobre uma pilha de cadáveres. Não há narração. As imagens e depoimentos garantem o triste drama real.
O título longa-metragem de Natasha Neri e Lula Carvalho faz referência à alegação de legítima defesa por parte do policial em ação que resulta na morte daquele que supostamente reage à prisão, colocando a vida do agente ou de outra pessoa em risco.
Destaca o filme: de janeiro a abril de 2018, 464 pessoas foram mortas pelas polícias do Estado do Rio em casos classificados como legítima defesa. Desde 1997, são mais de 16 mil mortos. E, somente em 2017, foram 1.330 mortos em decorrência desse tipo de intervenção, vítimas em sua grande maioria negras, pobres e moradoras de favelas.
As ocorrências são apresentadas nas delegacias pelos próprios policiais envolvidos. Os casos tendem a ser arquivados por falta de provas, já que a construção dos autos costuma apontar o morto como suspeito de atividade criminosa.
Auto de Resistência narra casos que alcançaram repercussão na imprensa por se caracterizarem como assassinatos, ou melhor, execuções mascaradas com evidências forjadas para caracterizar confrontos inexistentes. O documentário abre com os enterros de cinco rapazes entre 16 e 25 anos, ocupantes de um Fiat Palio sobre o qual foram disparados mais de cem tiros de fuzil. Na chamada chacina de Costa Barros, em novembro de 2015, os amigos voltavam de uma lanchonete, onde foram comemorar o primeiro emprego de um deles. Cruzaram com uma patrulha que esperava por traficantes que haviam roubado a carga de um caminhão. Não tiveram tempo de responder que não eram bandidos.
Natasha Neri conhece bem o assunto. É mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, trabalhou como pesquisadora do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ. Lula Carvalho é um dos mais renomados diretores de fotografia do cinema nacional. O diretores mostram no filme depoimentos de familiares, audiências judiciais, bastidores da CPI dedicada ao tema e vídeos de telefones celulares de vítimas e até mesmo das próprias forças policiais que não apenas contradizem a alegação de legítima defesa como chancelam a ocorrência de um assassinato. E são essas evidências que acabam levando poucos casos adiante para punição dos responsáveis.
Os registros de manifestações contra a violência policial nas comunidades pobres do Rio mostradas em Auto de Resistência, simbolicamente, trazem imagens da vereadora Marielle Franco, ela própria assassinada em março passado em circunstâncias ainda não esclarecidas. O crime segue sendo investigado.
Auto de Resistência
De Natasha Neri e Lula Carvalho
Documentário, Brasil, 2017 120min, 14 anos.
Estreia no CineBancários, com sessões às 17h e às 19h.