Treze anos atrás, depois de receber as críticas mais escabrosas pela participação no filme Alexandre, o irlandês Colin Farrell bolou o que achava ser um plano brilhante para lidar com a humilhação.
— Onde posso usar uma máscara de esqui sem ser jogado contra a parede por um bando de agentes da SWAT? — ele conta ter pensado na época.
Resposta: Lago Tahoe, onde Farrell passou os dias seguintes, mascarado e bêbado, lutando contra a necessidade de se desculpar com quem quer que tivesse ido ao cinema por desperdiçar tempo e dinheiro. Nenhuma situação de vida captura na íntegra as complexidades da pessoa, mas essa ajuda a explicar o carinho generalizado por Farrell. É difícil resistir a um malandro sensível, principalmente um astro de cinema com a sinceridade de admitir que a execração pública foi, no fim das contas, uma coisa boa.
— Eu andava precisando de um chute no traseiro. Muito, muito mesmo. Porque era um chato. Conquistei muita coisa, muito rápido. Virei um arrogante — conta o ator de 41, durante entrevista recente.
Desde então Farrell passou por uma metamorfose, e continua a mudar. Há uma década, ele interpretava o herói de ação genérico – ou pelo menos tentava – em seus filmes e/ou para si mesmo. Recebia avaliações medianas e conquistou a fama de mulherengo malcomportado com um apetite insaciável por bebidas e drogas. Depois de finalmente ver seu brilho se apagar, foi para a reabilitação assim que a última superprodução de que participou, Miami Vice, foi concluída, em 2006.
Mas em vez de esperar mais e fazer uma volta triunfal, Farrell retornou discretamente, com interpretações sinceras – como no independente Na Mira do Chefe, de 2008, e Coração Louco, de baixo orçamento, que lhe rendeu elogios. E antes que o público começasse a se sentir à vontade, voltou a mudar radicalmente, partindo para o território do cinema de arte pura, estrelando O Lagosta, do grego Yorgos Lanthimos, em 2015, e, mais recentemente, O Sacrifício do Cervo Sagrado. No primeiro, as pessoas são forçadas a virar bicho se não encontrarem um par romântico; o segundo conta a história de um pai/marido que pode ter matado um membro da própria família após aparentemente ter sido vítima de um feitiço, mas nenhum dos dois é o tipo de trabalho que se esperaria de um sujeito que já interpretou Sonny Crockett.
Farrell me encontrou para um bate-papo no bar de seu hotel, perto de Piccadilly Circus, onde está hospedado enquanto roda Dumbo, da Disney, com Tim Burton dirigindo atores de carne e osso.
Passou a maior parte dos últimos doze meses em sets e confessou estar morrendo de saudades de casa, em Los Angeles, e dos filhos, de 14 e oito anos.
— Digo isso como alguém bem consciente da sorte que tem; não estou falando para terem pena de mim. Mas já estou mais do que pronto para ir embora. Não vejo a hora de poder fazer uma caminhada, ver os meninos e sair para dar uma volta com eles.
Antes de Dumbo, do qual afirma estar gostando muito ("Tem comedor de fogo, os caras andando em cima de bolas gigantescas, trapezistas... e o Tim Burton correndo para lá e para cá com uma vara. Genial"), Farrell esteve em Chicago rodando Widows, com Steve McQueen; antes disso, trabalhou em Roman J. Israel, Esq., com Denzel Washington. E antes ainda veio O Sacrifício do Cervo Sagrado, rodado em meados de 2016, em Cincinnati – filme que, dessa leva mais recente, foi o que mais o afetou.
Com roteiro de Lanthimos e Efthymis Filippou, é muito mais sombrio que O Lagosta, carregado de ares cada vez mais claustrofóbicos. Nele, Farrell adota um tom monótono semelhante ao de O Lagosta, mas as semelhanças param aí.
David, seu personagem nesse último, é sem graça, introvertido, inocente e desesperadamente solitário – e o resultado é especialmente comovente, principalmente vindo de alguém tão intenso quanto Farrell, que diz ter se sentido verdadeiramente livre interpretando alguém tão contido. — Da maneira como o personagem é descrito, não precisei tentar – e nem quis – ser descolado, interessante, maneiro. Já Steven, o cirurgião que encarna em O Sacrifício, é astuto e arrogante, o que o deixou muito deprimido ao final das filmagens.
Ficou interessado no papel pela mesma razão que o atraiu a O Lagosta, ou seja, o brilhantismo, em sua opinião, dos mundos tortos que Lanthimos cria. Já o roteirista/diretor, viu em Farrell um colaborador para lá de criativo.
— É uma verdadeira dádiva esse tipo de relacionamento, pois permite que a gente vá além, que explore outras coisas além do lugar-comum. Esse trabalho foi um desafio, um lance bem diferente, mais complexo e sombrio, mas eu sabia que ele entenderia e daria o tom certo — elogia Lanthimos.
Apesar de já ter feito inúmeros filmes grandes, Farrell sempre preferiu os menores, pelas histórias mais específicas que contam. Quando Martin McDonagh o convidou a interpretar um mercenário em Na Mira do Chefe, basicamente lhe dando uma segunda chance, ele quase recusou o papel – afinal tinha participado de uma sequência de longas ruins e ainda sentia os efeitos do desastre que fora a película sobre a vida de Alexandre, o Grande. Temia que seu nome começasse a assustar e afastar o público.
Foi um período turbulento. Ele tinha acabado de sair da reabilitação, tendo finalmente cedido às pressões familiares para dar um rumo na vida. Quando pergunto o que o levou ao fundo do poço, ele é sucinto: — A vida. Depois, porém, acrescenta: — A intensidade da fama repentina, que veio com tudo depois que Joel Schumacher me escolheu para fazer Tigerland - A Caminho da Guerra (2000) e depois Por Um Fio (2002).
— Você começa a ouvir as pessoas elogiando, falando coisas a seu respeito, usando chavões, os presentes, os mimos... não é minha natureza acreditar nessas coisas. Até tentei ir na onda, mas não deu.
Seu primogênito, James Padraig, nasceu em 2003 (fruto de seu relacionamento com a modelo Kim Bordenave) e, a princípio, Farrell achou que seria melhor ser amigo do filho. — É, porque um bebê de seis meses precisa exatamente de um amigo de 27 anos que está sempre bêbado ou chapado — brinca. Teve o segundo filho, Henry, com a ex-namorada, a atriz polonesa Alicja Bachleda-Curus. Farrell tem guarda compartilhada de ambos e revela que não se lembra de nenhuma decisão que tenha tomado nos últimos doze ou treze anos que não levasse em conta o impacto que ela teria nos dois.
Agora sua vida gira em torno dos meninos, sua casa em Los Feliz, Los Angeles, ioga ("Disse que adoro, não que estou praticando") e sauna ("Totalmente purificador").
— Ele era um maluquete e agora canalizou toda essa energia para a família e o trabalho — descreve o diretor Dan Gilroy, que justifica a escalação de Farrell em Roman Israel em parte porque sabia que ele não se intimidaria com Denzel Washington.
Farrell pretende agora tirar férias bem longas, e se diz aberto para o que vier – sejam heróis de ação, embora não goste de armas, ("Odeio'!') ou, na onda dos filmes de Lanthimos, papéis menos sensuais, ainda que talvez seja o único a caracterizá-los assim.
— Ainda acho que estava sensual naqueles filmes, sim. Para deixar de sê-lo, só arrancando a cabeça dele — brinca McDonagh, por e-mail.
Por Cara Buckley