São Paulo – De talento promissor um dia chamado de "o próximo Steven Spielberg" a diretor em que nenhum grande estúdio queria mais apostar, M. Night Shyamalan foi do céu ao inferno de Hollywood em seus 25 anos de carreira. Sua volta por cima com Fragmentado, em cartaz nos cinemas, é atípica. Tanto pelo reconhecimento da crítica que tanto lhe massacrou nos últimos anos quanto pela equação que mais importa nessa indústria: com orçamento de US$ 9 milhões, Fragmentado já faturou US$ 257 milhões.
Em cartaz nos cinemas brasileiros, o novo trabalho de Shyamalan, 46 anos, promove um reencontro do diretor com o universo temático que o grande público conheceu a partir de seu terceiro longa-metragem, O Sexto Sentido (1999), indicado a seis Oscar, incluindo os de melhor filme e direção. Vieram na sequência Corpo Fechado (2000), Sinais (2002) e A Vila (2004). Shyamalan começou a ser criticado por apresentar ideias interessantes que não conseguia mais desenvolver em bons filmes, percepção aguçada em títulos como Fim dos Tempos (2008) e o desastroso Depois da Terra (2013).
Shyamalan decidiu voltar às origens. Lançou o suspense de horror A Visita (2015) com um modelo de produção mais modesto que, segundo ele, lhe permitia maior liberdade criativa e investiu em um projeto de TV (a série Wayward Pines). E agora exibe o fôlego renovado em Fragmentado.
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Seu protagonista no novo filme é Kevin (vivido pelo escocês James McAvoy), sujeito que sofre de transtorno dissociativo de identidade, distúrbio que o faz transitar entre diferentes personalidades. São 23, entre dominantes e secundárias. E uma 24ª está emergindo como ameaça tenebrosa. É sob a influência de uma de suas múltiplas identidades que Kevin sequestra três adolescentes e as confina em um porão. Marcia (Jessica Sula), Claire (Haley Lu Richardson) e Casey (Anya Taylor-Joy, ótima atriz vista no terror A Bruxa) logo percebem que o homem misterioso com mania de limpeza se apresenta também um menino de nove anos e uma austera mulher madura. A psicóloga Karen (Betty Buckley) também vê seu paciente entrar em seu consultório como um estilista com prolífica criação, entre outras personas. É um caso muito raro, descreve a profissional no ambiente acadêmico. E percebe também que a situação está saindo do controle.
Não cabe avançar muito em detalhes da trama e suas reviravoltas, para não arrefecer seu impacto – Shyamalan faz pelo caminho digressões para falar de temas como pedofilia. Mas vale ressaltar que o diretor consegue manter as rédeas firmes em todas as suas pontas para consolidar o reencontro com a fase de maior efervescência criativa de sua trajetória. Mostra que domina como poucos a carpintaria de seu ofício. O diretor americano nascido na Índia veio ao Brasil lançar Fragmentado, que deve ganhar uma sequência, e conversou com os jornalistas após a sessão em São Paulo, na terça-feira (veja trechos da entrevista mais abaixo).
– Essa é uma ideia que tive por volta do ano 2000. Criei primeiro o personagem, pensando em outro filme. Sempre fui fascinado por esse tipo de transtorno – explicou o diretor. – Acompanhando minha mulher no curso de psicologia, comecei a aprofundar a pesquisa junto a especialistas. Praticamente tudo no filme é real, apesar de parecer ficção. Não é uma questão de querer ser outra pessoa, é ser de fato outra pessoa e não só em aspectos psicológicos, mas também físicos. É um processo tão intenso que existem casos em que um cachorro percebe essa troca de energia e não é mais capaz de reconhecer seu dono.
Segundo Shyamalan, o tempo decorrido até realizar Fragmentado ajudou a amadurecer o projeto:
– Corpo Fechado foi considerado muito sombrio. Senti que não havia naquela época clima para um filme que falasse de temas como traumas de infância e abuso infantil. Com o tempo, as coisas mudaram, o mundo se tornou mais sombrio, até apareceram heróis com Jack Sparrow e Tony Stark, beberrões e mulherengos (risos). Acredito que hoje o público está mais conectado e aberto ao universo de Fragmentado. Gosto da estrutura que encontrei para o filme, que é difícil enquadrar em um gênero. Começa como suspense, vai para thriller psicológico, flerta com o terror e no final ainda ganha outro sentido, mostrando do que a mente humana é capaz. Para mim, filmes leves e com finais felizes é que estão em baixa.
O repórter viajou a convite da Universal Filmes
Entrevista com M. Night Shyamalan
Como entusiasta de fenômenos paranormais, de super-heróis e de alienígenas, você cria histórias para você mesmo?
É a minha forma de conversar sobre espiritualidade. Não falo de religião, mas de fé, da crença no extraordinário. É uma forma de falar de fé, do medo do desconhecido. Talvez existam aliens e fantasmas, talvez algum nós tenha um dom especial. Eu acredito nisso.
Cada novo filme seu passou a se ver sob um julgamento: um grande trabalho como os do começo da sua carreira ou um novo desastre de crítica. Você sente que continuam a julgá-lo?
Sim, mas não dá para comparar filme com filme. Existe sempre uma expectativa. Quando não faço thrillers psicológicos as pessoas parecem ficar confusas. Quando todos têm a mesma expectativa, eu, o público, o departamento de marketing do estúdio e os críticos, tudo funciona melhor. É mais ou menos assim: faço sempre Coca-Cola, mas agora quero fazer chá. Daí dizem: "Mas chá é ruim, queremos Coca". E respondo: "Mas eu avisei que ia servir chá". Filmes mais sentimentais são arriscados, são como fogo para os críticos. Quando tive meus filhos, investi em temas mais sentimentais. Bom, agora estou servindo Coca novamente (risos).
Fragmentado dialoga com Corpo Fechado. Seu público-alvo reúne uma nova geração e aqueles que conhecem seus trabalhos anteriores. Em qual deles você pensou?
Em meu filme anterior, A Visita, o público-alvo ia de 14 a 22 anos. Em Fragmentado, essa faixa é ampliada para mais 30 anos. Pega pelos menos duas gerações distintas. É interessante, porque uma vai chegar ao final e dizer: "Uau, meu deus!" e outra é capaz de perguntar: "Ei, o que está acontecendo?". Quando fiz a primeira exibição do filme, houve uma reação muito entusiasmada de quem entendeu as referências. Tive de dizer: "Eu mato quem der spoiler" (risos).
Depois de filmes de orçamentos superiores a US$ 100 milhões com grandes estúdios de Hollywood, você realizou Fragmentado e seu filme anterior, A Visita, no modelo independente de baixo custo. Quais diferenças entre um e outro?
Meu próximo filme terá orçamento ainda mais baixo. Esse modelo atual me traz as vantagens de fazer coisas fora do comum, diferentes daquilo que um grande estúdio esperaria de mim. Isso inclui escolha de elenco e prazos de produção. Posso refazer algo que não funcionou, tentar algo de um jeito diferente sem dar explicação para quem deu o dinheiro porque eu também dei dinheiro. É como se estivesse começando outra vez a fazer cinema. Posso aprender com meus erros. Posso fazer coisas mais sombrias e malucas com possibilidade maior de ser bem-sucedido. Se com um filme pequeno você faturar nos EUA US$ 25 milhões, US$ 30 milhões, você é um profeta (risos). Mas se você for falar de crianças vítimas de abuso em um filme de mais US$ 30 milhões, já é um risco muito alto.
Como foi o trabalho de direção com James McAvoy? Cada personalidade de seu personagem foi trabalhada individualmente?
Diretores e roteiristas costumam criar seus personagens pensando em diferentes atores para interpretá-los. Neste filme, usei o mesmo ator para vários personagens, mas trabalhei como normalmente trabalho. A diferença é que não havia um ator entrando no set e outro saindo. Era sempre James, James, James. E ele é um ator fantástico. Procuramos trabalhar uma personalidade por dia. Poucos conseguem organizar isso da maneira que ele se conseguiu. Por vezes, parávamos tudo para aplaudi-lo.
É anunciado que o protagonista de Fragmentado tem 23 personalidades e mais uma outra a caminho. No filme, você apresenta apenas oito, mas vemos que nomeou todas as 23. Essas outras também foram desenvolvidas e tiveram de ficar de fora?
Os personagens que estão no filme são os que desenvolvi completamente. Há seis outros se desenvolvendo na caminha cabeça.
Você gosta mais de que etapa do processo de produção, criar histórias ou filmá-las?
Gosto das duas. Fico seis meses escrevendo com a porta fechada, sem falar muito com as pessoas, apenas eu e os personagens. Depois, das filmagens ao lançamento, vou ter de lidar com centenas de pessoas. E daí volto a ficar sozinho de novo.