Na edição passada do DOC, Carlos André Moreira abriu a discussão sobre o filme A chegada (ainda em cartaz nos cinemas). Como ele, nos encantamos pelo enredo e acreditamos que vale umas palavras a mais. A obra é um respiro neste momento de declínio das esperanças. Enquanto todos os filmes de ficção científica atuais seguem pela via das distopias, certos de que um futuro negro nos aguarda, este aposta em alguma viabilidade para a humanidade, embora não sem percalços.
A trama é simples: os ETs chegaram à Terra mas, obviamente, não falam nossa língua. Isso não tem sido tão evidente porque usualmente projetamos neles nossas características e costumamos imaginá-los como homenzinhos. Fazemos com eles o que já fizemos aos deuses: criando-os à nossa imagem e semelhança. Por isso nem costumamos colocar-nos a questão básica: se outra forma de vida inteligente aportasse por aqui, por que teria uma forma de troca simbólica com sons, como fazemos, e não pela visão, como no filme, ou ainda outra maneira qualquer? No filme, frente à dificuldade de entendimento, entra em cena nossa heroína, uma linguista.
Os visitantes têm a aparência de polvos gigantes com sete tentáculos, e aparentemente vertebrados. Esses "heptápodes" enviaram à Terra 12 naves, similares a monólitos, que estacionaram em diferentes continentes, e ali ficaram imóveis, aguardando contato. Cada país "invadido" tenta entender a razão da sua presença, mas tende a fazê-lo paranoicamente, imaginando neles nossa agressividade latente.
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Na trama, acompanhamos a tentativa dos norte-americanos de estabelecer um contato através da doutora Louise Banks. Desde as primeiras cenas, ficamos sabendo que ela é uma mãe enlutada, tomada pelas recordações de sua amada filha única perdida na adolescência. Enquanto os espectadores estão encharcados de suas reminiscências lindas e tristes, surgem as naves, e ela é sequestrada para dentro dessa outra cena de caos internacional, na urgência de estabelecer o entendimento. Ah, e quem não quiser spoilers, melhor salvar este texto para ler depois de ver o filme.
A questão que Louise é incumbida de responder aos governantes nervosos é: o que os recém-chegados querem aqui? De modo incompreensível, para aqueles que os esperavam dentro da nossa lógica colonialista, eles vieram para dar-nos um presente: sua língua. Miticamente pensando, a dádiva seria um código que desfaria a maldição de Babel, para que então pudéssemos voltar a entendermo-nos. Lembram que lá no começo dos tempos fomos divididos em várias línguas, punidos pela nossa soberba de querer chegar aos céus? Bem, desde lá nunca mais nos entendemos.
Com uma intervenção novamente vinda dos céus, teríamos a chance de conectarmo-nos através de uma língua universal. Apesar do tanto que nosso mundo é interligado, nosso tempo não é de sínteses, mas de atomização. A cada dia tornamo-nos mais isolados, apaixonados pelas pequenas diferenças. Na época da pós-verdade, atingimos a comunicação de grau zero, em que as pessoas acreditam somente no que querem, alheias a fatos ou argumentos.
Ao submergir na linguagem deles, Louise tem acesso a uma experiência peculiar da temporalidade. Passado, presente e futuro são conjugados simultaneamente, numa vivência circular. A forma como entendemos nossa vida é linear: com um passado que já estaria encerrado, um presente que constitui nossa realidade atual, e ao futuro ficaria reservada uma mistura de esperanças e temores.
Os mitos do tempo circular, de eterno retorno, são recorrentes, praticamente todas as cosmologias os trazem. Entendidos como uma cópia da natureza, seriam cíclicos tal como o movimento dos planetas e a sucessão das estações onde a natureza morre e renasce.
Os psicanalistas percebem que nosso cérebro tem um tempo não linear. Não vivemos a realidade uma só vez. Como nossas histórias pulsam em nós, as lembranças não cessam de voltar, embora nem sempre iguais. O presente é tingido pelo contexto dessa história em constante reedição. Já o futuro faz uma sombra sobre nossa vida atual, no sentido da relação com os desejos e medos que nos movem ou mesmo até nos paralisam. Enquanto a vida real é uma sucessão linear de dias e acontecimentos, a vida subjetiva é circular, como a dos ETs.
No processo de Louise, que centraliza o filme, as reminiscências a respeito da filha perdida são acompanhadas, em paralelo, pela introdução na linguagem dos heptapodos. São cenários diferentes, apresentados alternadamente, sem compreendermos claramente como colocá-los na linha do tempo. Falar diferente nos faz também pensar de modo diverso. Essa é a premissa da Dra. Banks, que por isso tenta estabelecer com os visitantes uma verdadeira empatia. Ela quer sentir-se dentro do modo deles de ser. De fato, algo modifica-se quando transformamos a linguagem. Por exemplo, o tão criticado advento do politicamente correto tem seu fundamento na ideia de que pensamos de acordo com o modo como nos expressamos. Achamos óbvio o contrário, ou seja, que as palavras traduzem pensamentos, enquanto, na verdade, elas também os engendram. Do mesmo modo, ocorre que se formos viver em algum lugar muito diferente da nossa origem acabamos sendo transformados por aquela cultura, sintetizada na linguagem utilizada. Graças a isso, aqueles que se mudam têm a chance de descobrir novos jeitos de lidar com velhos impasses.
Nessa trajetória, quer seja linear ou circularmente concebida, há uma única certeza: o fim, a morte. Em sua concepção de linguagem, esses extraterrestres teriam uma relação mais natural com a finitude. A ideia é que nos beneficiaríamos ao nos admitirmos como temporários, passageiros na vida, assim como em amores, conquistas e posses. Isso talvez ceifasse pela raiz a onipotência em nome da qual estamos há séculos em conflitos letais. Se não tivéssemos mais necessidade de negar isso, o futuro poderia fazer parte do presente e tenderíamos mais à humildade.
Em nossa mente, a morte costuma ocupar uma espécie de limbo, um vazio onde ideias são geradas ao seu redor. Os lutos, quando precisamos fazê-los, são processos tanto mais traumáticos quanto nos remeterem a esse território solitário e desértico ao qual relegamos os pensamentos sobre a finitude. Os moribundos e os enlutados vagam pela terra sozinhos, pois do que está ocorrendo com eles ninguém quer saber.
No rumo oposto, insistimos em uma eternidade imaginária, cada um agarrado à sua parca duração como se o passado tivesse existido organizado para viabilizar nossa própria e inquestionável existência, enquanto o futuro é um lugar do qual ninguém abre mão de participar. É difícil admitir que nossa vida é fruto de um acaso, uma loteria genética.
Como pensar uma existência na qual a certeza da morte não anulasse a relevância da vida? Essa é a grande questão que liga a linguista, os extraterrestres, a morte e a paz mundial. O novo modo de pensar da doutora, povoado de imagens de sua filha Hannah, cresce a partir da vontade de compreender-se, do encontro empático entre Louise e os heptápodes. Esse encontro é figurado como um mergulho, no qual ela entra numa espécie de bruma em que eles habitam sem escafandros, máscaras ou proteções. Ela literalmente submerge nas vivências subjetivas que a presença deles faz acontecer.
Na origem da linguagem em cada um de nós há também essa entrega, uma espécie de placenta simbólica em que nos banhamos, acompanhados de quem nos acolhe, ao nascer. As palavras, para um bebê, são unidades que vão aos poucos ganhando destaque entre uma massa indistinta de sons na qual ele flutua. Ele faz isso porque, assim como os extraterrestres e Louise, está interessado na conexão. Essa postura, como se vê nos conflitos entre Louise e os governos belicistas que querem atacar as naves, parte da disponibilidade para deixar-se transformar pelo outro. Já a atitude guerreira, que hoje nos define, pessoal e coletivamente, é de eliminar qualquer alteridade, de permanecer numa bolha de identidades fixas e pobres. No filme, assim como é mais comum em nossas vidas, há uma mulher, uma mãe, no papel de criação desse canal de mútua compreensão. Não se trata apenas de ensinar a língua falada ao filho, assim como no filme não bastava fazer os ETs entenderem o inglês.
As mulheres, na abordagem delicadamente feminista do diretor canadense Denis Villeneuve, seriam aquelas que estariam em condições de suportar a consciência da fragilidade da nossa existência. Desde Alien, que nos apresentou à tenente Ellen Ripley, não tínhamos uma heroína capaz de enfrentar a lógica masculina da guerra e da ganância. Louise Banks é novamente essa mulher, através da qual talvez pudéssemos reconhecer a importância de aceitar a morte e nossas diferenças. Para tanto, temos que saber-nos passageiros. Parece pouco, mas trocando em miúdos é tudo o que temos: mesmo tão provisórios, comunicando-nos temos alguma chance de inscrever-nos nessa grande narrativa a que chamamos de vida.