Aos 64 anos recém completos (em 1º de agosto), Bruna Lombardi está no auge da beleza. No seu caso, que fique claro, o auge já dura algumas décadas – e parece distante do fim. A paulistana esteve em Porto Alegre em junho para participar de um congresso e autografar seu mais recente livro, Jogo da felicidade (Sextante, 2015) – é o nono, em uma carreira que inclui também mais de duas dezenas de novelas e filmes como atriz ou como produtora/apresentadora. Ela veio a Porto Alegre preparada para falar sobre "os desafios culturais e éticos em tempos de crise", mas disposta a abordar outros temas – inclusive o fato de ser musa em uma sociedade que tanto, e cada vez mais, valoriza a juventude.
De óculos escuros (que só tirou ao final dos mais de 30 minutos de conversa), simpática e atenciosa, ela recebeu ZH em uma antessala do Teatro do Bourbon Coutry. Respondeu sobre feminismo, cultura, educação e consumo no Brasil e nos EUA, para onde se mudou nos anos 1990. Comentou seu método de trabalhar em família. E explicou a negativa ao convite para ser ministra no governo interino de Michel Temer.
Poucas vezes se falou tanto em feminismo como nos últimos tempos no Brasil. Na condição de um dos ícones femininos do país, como você tem observado esse momento?
O discurso feminista, na verdade, é cíclico. O que me pergunto é: por que as coisas são assim, por que estamos sempre voltando às mesmas etapas já discutidas anteriormente, e não avançando nas discussões propostas? Por que esse discurso é cíclico e não evolutivo? Muda a geração, e os debates seguem os mesmos travados pelas gerações anteriores. No fundo, trata-se de um problema de educação. O Brasil nunca investiu, de fato, em educação. Pelo contrário: ao longo dos séculos, as classes dominantes acreditaram que seria melhor deixar o povo deseducado. Acreditaram que teriam a supremacia facilitada assim. Esse não é um problema de todos os países mais jovens em geral – há exemplos de nações novas que investem em universidades e têm o ensino de toda a população entre suas prioridades. Historicamente, no Brasil, os filhos das elites iam estudar fora, e os filhos das classes mais baixas ficavam com o que havia aqui. No fundo, estamos colhendo o que plantamos.
O Brasil é um país desigual e também muito religioso, o que acaba influenciando na discussão sobre o lugar da mulher. Você acha que também somos machistas?
Sem dúvida. O que também tem a ver com falta de educação. Se há gente cogitando que um estupro seja culpa da vítima (referência ao estupro coletivo sofrido por uma menina de 16 anos no Rio, em maio) é porque falhamos em aspectos básicos da formação das pessoas. Nosso machismo também é fruto do que foi plantado ao longo da história. O retrocesso, nessa questão do estupro, é tão grande... Fica claro que estamos atrasados. Parece que não estamos andando em ciclos, e sim para trás. Involuindo. Já deveríamos estar em outro patamar da discussão feminista – a equiparação salarial, por exemplo, que é uma questão relevante à medida que há uma discrepância entre o que se paga a um homem e a uma mulher. Mas ainda estamos em um estágio anterior.
E quanto à cultura? Esse tema está no centro dos debates, sobretudo com a extinção, depois revogada, do ministério da área. Como você observa isso, incluindo as manifestações virulentas de uma parcela da população contrária à produção de cultura não sustentada pelo mercado?
Cultura é educação! As duas coisas evoluem juntas. Nossos sinais de falta de educação são também sintomas de falta de cultura. O Brasil tem uma particularidade que é o fato de ser um país plural, formado pelas expressões culturais de caráter regional. Essas expressões precisam ser defendidas pelo Estado, preservadas, mesmo que não sejam consumidas pela maior parte do povo, ainda mais no ambiente globalizado em que vivemos. Agora, estou alheia a essas manifestações virulentas que você menciona. Não vi nenhuma.
Na sua opinião, até onde o Estado deve ir para financiar projetos culturais?
O mercado é a medida. A resposta a essa pergunta é simples: o Estado deve ir até onde não se consegue manter uma indústria. Quando um segmento é capaz de se manter com o consumo do público, a intervenção do Estado não é necessária. Quando não consegue, é o contrário. Sou contra o paternalismo estatal. Sou a favor do uso de recursos públicos para não deixar que determinadas expressões regionais, por exemplo, morram. Veja também o exemplo dos livros: lê-se pouco no Brasil. Vamos parar de editar livros? E aqui, de novo, temos de falar de educação. Lemos pouco porque temos educação precária. No fim das contas, tudo volta para esse tema. A base da discussão sobre consumo de cultura está na educação.
Você realmente foi convidada a ser ministra da Cultura do governo interino de Michel Temer?
Sim.
Mas foi um convite para ser ministra, mesmo, ou uma secretária da Cultura vinculada ao Ministério da Educação?
Ministra. Ao menos foi o que me falaram no telefonema que recebi. Acho que já estava acertada a "volta" do ministério. Não sei ao certo, eu estava em Los Angeles, passei boa parte dos últimos meses lá.
E você não aceitou.
Recusei na hora.
Por quê?
Em primeiro lugar, porque estou ocupadíssima com um novo projeto. Mas também porque não me considero a melhor escolha. Trabalho com criação, e não organização da cultura – ainda que todos os artistas, no Brasil, tenham de saber lidar com aspectos além da produção propriamente dita. O que o país precisa é de administradores para a cultura, e não de figuras que estariam lá por serem conhecidas. Precisamos de técnicos, e não de políticos.
Você morou durante muito tempo nos EUA, inclusive segue vivendo e trabalhando entre os dois países. Como compara a experiência de produzir cultura lá e aqui?
Pois é, como meu filho (o ator Kim Riccelli) se formou lá, acabou firmando raízes nos EUA. E eu gosto muito de estudar, sigo fazendo cursos, sobretudo de roteiro, já que as possibilidades, lá, são muito grandes. Então, acabo indo e ficando por longos períodos. Tudo isso, de fato, me permite ter distanciamento para entender como se dá a produção de cultura nos dois países. Os EUA constituem um dos melhores exemplos de país jovem que soube investir em educação e cultura. Podemos segui-los, sem dúvida. Devemos observar como as elites de lá acham importante financiar universidades, estimular a pesquisa, coisa que aqui parece tão distante – e, por isso, dependente de recursos do Estado. Mas o primeiro passo, para nós, é entender as particularidades do Brasil. Os EUA têm grandes problemas, também. Que são de outra ordem. É por isso que não dá para fazer maiores comparações. Dá para pensar os dois países a partir de abordagens genéricas, mas no detalhe as peculiaridades de cada um é que devem definir as políticas de atuação.
O trabalho mais recente de vocês (Carlos Alberto e Kim Riccelli na direção, Bruna no roteiro e na produção, os três no elenco) é o filme Amor em Sampa, musical lançado em fevereiro. Embora tenha vários fãs entre os cinéfilos mais velhos, os musicais não costumam agradar às plateias mais jovens.
Esse longa virou musical de forma natural. Não foi uma escolha deliberada. Escrevendo o roteiro, percebi, lá pelas tantas, que os personagens estavam cantando. O texto tinha ritmo musical, e eles se expressavam seguindo esse ritmo. Foi incrível isso. Chamei o Ri e comentei com ele. Rimos juntos. Como costumo respeitar demais meus personagens, apenas permiti que eles passassem a cantar e a dançar. Era como eles queriam se expressar... Agora, Amor em Sampa apresenta uma mistura de vários gêneros. Tem um pouco de tudo ali. E o que é curioso é que tudo fluiu e acabou ficando assim sem muito preparo prévio. Depois, fazendo um workshop nos EUA, ouço o ministrante dizer que a síntese do cinema contemporâneo é a mistura de gêneros. Sem querer, acho que nos inserimos nessa teoria.
A atuação multidisciplinar é uma característica marcante da contemporaneidade, não apenas da produção artística.
Pensa em um equilibrista com vários pratinhos nas mãos, segurando todos ao mesmo tempo para que nenhum caia. Vejo-me assim. Vejo as pessoas de uma forma geral assim, hoje em dia. Todo mundo é bombardeado por muitas informações e demandas da sociedade, e tem de se virar para dar conta de tudo, informar-se, conhecer as coisas, posicionar-se diante delas, trabalhar, cuidar da vida pessoal etc.
Seu trabalho de roteirista, em filmes como O signo da cidade (2007) e Onde está a felicidade? (2011), além de Amor em Sampa, permite identificar algumas características autorais. Você gosta dessa estrutura de painel, com vários personagens se entrecruzando, como se fosse um folhetim, não é? Por quê?
Para mim, O signo da cidade e Amor em Sampa se complementam. O primeiro é mais dramático, e o outro, mais alegre. Mas ambos têm São Paulo como cenário. São visões possíveis da cidade e de seus moradores. É a cidade que puxa esse painel, ao menos na minha visão. Pensar na cidade me faz automaticamente pensar no encontro de pessoas muito diferentes, várias delas.
Você pensou esses filmes a partir da cidade?
Sim, nos dois casos eu quis fazer algo sobre São Paulo, em primeiro lugar. Transformar a cidade em um personagem, praticamente.
Como se dá o processo de criação em um projeto em que você escreve o roteiro e assina a produção, seu marido dirige, às vezes ao lado de seu filho, com vocês três juntos no elenco?
Começa quando eu escrevo. Faço isso sozinha. Depois, com o texto pronto, tudo se mistura um pouco, porque a gente acaba conversando muito e influenciando um ao outro. Temos uma sintonia muito grande. Acho que, no fundo, não paramos nunca de trabalhar, porque estou sempre escrevendo, e o Ri e o Kim, além de compartilharem suas impressões sobre os textos, conversam muito sobre suas inquietações. De modo que tudo vai surgindo de maneira orgânica. Agora, por exemplo, o Kim vai assinar comigo a autoria de uma série de TV na qual estamos trabalhando (leia mais abaixo). É uma função que não havíamos compartilhado ainda.
Te incomoda a falta de popularidade dos filmes nacionais? As comédias com atores da Globo são exceções. Filmes de outros gêneros são pouco vistos pelo público. Amor em Sampa, por exemplo, levou menos de 15 mil pessoas aos cinemas. Há filmes bons de outros autores que levaram menos de 5 mil.
Pois é, o cinema brasileiro não é sustentável. Há uma distância gigantesca entre a produção comercial e aquela mais reflexiva, que não tem muito espaço e tem uma característica às vezes exclusivista, mesmo, que pela própria natureza mais hermética tem dificuldades para dialogar com o público. Faz parte. É bom que esse tipo de filme exista. O que falta, de fato, é o caminho do meio. É nisso que acredito: projetos com capacidade de conversar com o chamado grande público, mas que tenham cuidado autoral, sutilezas, que não sejam para consumo rápido. Em países com indústrias cinematográficas mais consolidadas, esse caminho do meio existe. Muitos artistas trabalham nele. Fazendo um paralelo com a sociedade de maneira geral: há os pobres e aquele 1% de muito ricos; no meio deles, está a enorme classe média, que é quem de fato consome e sustenta a economia. Precisamos fazer a classe média do cinema aflorar no Brasil. E fazer com que essa fatia da população consuma produtos mais interessantes, com trabalhos mais elaborados, de valor artístico.
Qual o caminho para isso?
Lembra que, lá no início da conversa, falamos em educação? Acho que tem muito a ver com isso. A falta de prestígio desse cinema intermediário é o retrato de um país que não investe em educação e não dá cultura para o seu povo. A classe média brasileira é absolutamente massacrada. É muito cobrada, precisa ser bem-sucedida no mercado, precisa ser culta, educada, mas não tem base, não tem formação para isso. A classe média não tem força para sustentar o Brasil, diferentemente do que acontece em outros países.
Como é ser uma musa e um exemplo para as pessoas há tanto tempo, em um mundo que valoriza tanto a juventude?
Sabe que nunca penso sobre isso? Não trago esse peso comigo. Às vezes as pessoas me trazem isso, fazem comentários, ou perguntas como esta. Mas é só. Essa mochila eu não levo nas costas. Minha mochila está sempre vazia: disposta a ser preenchida com novas vivências que vou experimentando. Sou muito curiosa, estou mais interessada em descobrir o que está lá fora. O que eu sou deixo para os outros verem.
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RETORNO ÀS TELINHAS
Bruna Lombardi tem estado longe da TV – fez uma participação especial, em 2007, na série Mandrake, do canal pago HBO, e não atua na TV aberta desde O quinto dos infernos, minissérie global de Carlos Lombardi exibida em 2002.
– Cinema toma todas as nossas energias, é absorvente demais. E nos EUA ainda fiz teatro e dramaturgia. Então, televisão acabou ficando um pouco de lado – explicou nesta entrevista.
Ela já anunciou, contudo, o retorno à TV na série A vida secreta dos casais, que começa a ser gravada em setembro e tem estreia prevista para 2017, na HBO. A criação é dela e do filho Kim. A direção será de Carlos Alberto Ricelli, também em colaboração com o filho. Na trama, prevista para durar 10 episódios de uma hora, Bruna interpretará uma terapeuta sexual que se envolverá com um paciente e se verá enredada em um mistério.
Ela também trabalha em uma nova versão de Gente de expressão, programa de entrevistas que apresentou nos anos 1990 nas redes Manchete e Bandeirantes. A nova atração será veiculada na internet, em seu portal Rede Felicidade, previsto para ir ao ar a partir do mês que vem.