"Van Gogh está na moda — moda frenética —, ao extremo de que os visitantes se aglomeraram em quatro filas diante dos quadros enquanto uma fila tão comprida como a que vemos nos cinemas se estendia à entrada do museu", espantou-se o crítico Georges d'Espagnat após uma exposição do artista holandês no Museu l'Orangerie de Paris em 1947.
Ele prosseguiu com uma leve zombaria àqueles que ainda proclamavam estarem frente a um gênio desconhecido: "Em todos os lugares elegantes, nos chás luxuosos ou sensivelmente burgueses, as pessoas do mundo mais elegante lançam exclamações cheias de admiração por este pintor que cada um se congratula por ter descoberto".
Vincent morrera quase seis décadas antes, em 1890, sem nunca ter sido capaz de se sustentar por meio da própria arte. Após uma existência por vezes torturada, ele plantou uma bala no próprio corpo aos 37 anos, com, oficialmente, apenas um quadro vendido. Entre a morte precoce e o reconhecimento tardio, nasceu uma mítica em torno do pintor que alimenta o público até hoje, 168 anos após seu nascimento em 30 de março de 1853.
Mítica essa que gira em torno, ainda, de orelhas cortadas, corações partidos e crises psíquicas, cujo resultado é uma reverência ao artista atormentado por trás de cada autorretrato quase tão grande quanto o encantamento provocado por seus girassóis ou noites estreladas, com sua profusão de tons de amarelos e azuis.
— A vida dele tem um elemento de abnegação quase messiânico, tem a força de alguém que quase não teve reconhecimento, que dependia financeiramente do irmão mais novo para viver e que apesar de todos os fracassos continuava a acreditar em sua pintura como único caminho possível — afirma Felipe Martinez, que atua como professor de História da Arte no Masp e no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
Ao irmão, Theo, Vincent não deve somente o apoio em vida, como parte da glória póstuma: foi a correspondência entre os dois que permitiu ao mundo vislumbrar os tormentos do artista de forma íntima, elevando a genialidade de sua obra ao panteão das Mona Lisas, Vênus e Pietàs e o nome Van Gogh ao mais alto círculo da história da arte.
— Temos sempre que ter em mente que é impossível olhar para Van Gogh ou para suas obras sem o peso dessa mitologia. Não só dos acontecimentos trágicos de sua vida, mas também tudo o que se disse sobre ele depois — defende Martinez.
Correspondência
Publicadas em 1914 pela viúva de Theo, Johanna van Gogh-Bonger, as 652 cartas somam mais de mil páginas. Nestes mais de cem anos desde sua divulgação, elas foram inspiração para um sem-número de adaptações, desde livros até filmes e peças de teatro — chegando até aos palcos brasileiros.
Um dos exemplos é a premiada peça Van Gogh, do ator Elias Andreato, em que ele traça paralelos entre a relação de Vincent e Theo com a dele e seu irmão, o artista Elifas. Com direção de Marcia Abujamra, a produção está atualmente em cartaz, depois de 17 anos, em um novo formato digital, via Zoom. Ainda há sessões, gratuitas, em 3 e 4 de abril, às 19h.
Quem também retornou em novo formato foi o teatro nanico de Pintor de Palavra, do catarinense Luciano Mafra, originalmente lançado em 2012. Agora, a produção pode ser apreciada como curta-metragem diretamente no YouTube (com áudio e legendas em língua portuguesa).
— Em duas semanas, já são mais de 3 mil visualizações no YouTube. As pessoas estão sendo tocadas pela emoção, pelas próprias palavras de Van Gogh. Definitivamente, a sua obra é contagiosa — reflete Mafra.
Em pouco mais de 22 minutos, são homenageadas algumas das mais famosas obras de Van Gogh, como Os Comedores de Batata e Quarto em Arles, ao mesmo tempo que a biografia do holandês é celebrada. A história é narrada a partir de Cartas a Theo, que Mafra aponta como a obra que o apresentou verdadeiramente a Vincent:
— Quanto mais lia as cartas, mais o conhecia, e conhecer um artista através de suas próprias palavras é uma maneira de conhecer seus pensamentos, descobrir seus sonhos, perceber sua dedicação à arte, seu caráter impecável e sua lucidez, sua luta para se manter ativo e lúcido.
Em anos recentes, os tributos a Vincent ainda incluíram títulos como o drama animado Com Amor, Van Gogh (2017), de Dorota Kobiela e Hugh Welchman, que trouxe à vida as obras do pintor como o primeiro filme do gênero produzido a partir de pinturas a óleo; e No Portal da Eternidade (2018), de Julian Schnabel, que levou Willem Dafoe a ser indicado ao Oscar de melhor ator por seu retrato de Van Gogh.
E, se por um lado tais produções podem reproduzir versões bastante fictícias da vida do pintor, por outro, elas transportam Vincent e sua obra para além das fronteiras do mundo da arte, alcançando novos públicos e conquistando novos olhares.
— Tudo isso contribui para a presença dele na cultura pop, desde o célebre filme Sede de Viver, baseado em um livro homônimo de Irving Stone, com Kirk Douglas no papel do artista — comenta Martinez. — Sobre o episódio de Doctor Who, eu acho que o Van Gogh de verdade teria saído correndo daquela exposição e dito para as pessoas que elas estavam erradas em gostar dele, risos.
No capítulo em questão da série de ficção científica, Vincent e o Doutor, o protagonista, um viajante no tempo, e sua companion Amy Pond visitam o holandês no século 19. Buscando aplacar parte dos demônios do pintor, ao final da jornada eles decidem trazê-lo para uma breve visita a um museu de Paris, em 2010. Especificamente, à galeria dedicada a Van Gogh.
"Van Gogh é o pintor mais admirável de todos. Certamente o maior e o mais popular pintor de todos os tempos. O mais amado", reflete o guia, ao ser questionado pelo Doutor. "Seu domínio sobre as cores é maravilhoso. Ele transformou a dor de sua vida atormentada em beleza extasiante. Dor é fácil de retratar, mas usar sua paixão e dor para retratar o êxtase e alegria e a magnitude do nosso mundo... É algo que ninguém havia feito antes, talvez ninguém nunca mais faça", prossegue com emoção.
"Em minha concepção, aquele estranho e selvagem homem que perambulou pelos campos de Provença não foi somente o maior artista do mundo, mas também um dos maiores homens que já viveram", conclui o personagem. E, então, ao menos na ficção, Van Gogh pôde desfrutar, por um instante que seja, o legado que ele jamais imaginou.