Para minha querida mãe, Suely Martins Pacheco (*8.10.1918/+23.12.1947)
"De onde nasce esta mágoa que, lenta, apisoa o meu coração? De onde nasce esta perturbação, que faz a mente girar qual um leme louco? De onde nasce – nasce de repente – esta sensação de tempo fugindo, sensação de pessoas partindo, partindo para as regiões do nunca-mais? Esta como que agonia de antevéspera de despedida, de onde nasce?
Mas se a dor existe, se a dor é imensa, por que não chorar? Mas se a dor existe, se a dor foi intensa, por que não lembrar?
À tarde, lembro ao acaso, mas regularmente, e as cenas todas de prematura purificação. Os nossos olhos inocentes lembram que passeiam tristes – os nossos olhos – no Natal de incabível provação. Estou a me lembrar com meu pai e minha irmã: os rudos passos e os pequenos caminhares.
Para onde o carro escuro está a levar minha mãe? Para onde nos conduzem as contraídas mãos de meu pai? Meus oito anos, os cinco de minha irmã; tão longe dos longos passos dele; tão quase nos mesmos pensares. Por que minha mãe tão guardada? Por que minha irmã sem as tranças? Por que a Rua promete e não tem Praia? Como poderei entendê-las?
Senhor! Nossas mentes não seriam demasiado imaturas para uma dor tão grande?
Afoitas comerciárias invadem as calçadas; cantam, dançam, nada fazem que nos toque. Uma delas segura o brinquedo e as divisas conquistadas nas revoluções de meu pai derrotado. No guerreiro, só as perneiras brilham. Ele não nos acena com nada, ele não nos pode dar nada – nós já sabemos nada querer...
Rememoro, neste, inúmeros natais findos. Meio século, meu Deus, ou apenas um pedaço de eternidade? Quem disse que as pessoas só morrem quando morre o último a delas se lembrar? Imperioso escrever isso. Um poema? Um doido tema? Algo que não precisava referir, não fosse a imensa necessidade de não sentir. Justo eu que, adolescente lógico, deplorava o traçado ingênuo da retórica. Justo eu que, moço rijo, abominava as curvilíneas pieguices.
Posso apenas, quem sabe, um ditado lá de cima, daqueles copiados com letras tremidas.
Depois, os Natais subsequentes: com chuvas, com sóis, com aquela mesma tarde de vivos ventos. Depois daquela Cruz, incontáveis cruzes plantadas ao longo dos caminhos.
Compensatoriamente, chegaram demonstrações dos teus desígnios, Senhor. Exemplo eloquente são os extraordinários 95 anos de meu pai. Vida que teimas em preservar lúcida – só para não nos machucar de novo.
Hoje, ao contemplar este Natal de deslumbrante profusão de cores, luzes, pirotecnia e suaves cânticos de eternidade, impossível não compartilhar da magnífica realidade presente; da felicidade das crianças hipnotizadas no imediatismo dos brinquedos.
Mas confesso que, por vezes, o Natal ainda entra conosco e com o trem noturno Porto Alegre-Santa Maria, naquele 24 de dezembro de 1947, para invadir uma noite enorme".
Colaboração: Paulo Francisco Martins Pacheco, professor, cirurgião dentista, advogado e tenente-coronel da Brigada Militar.