Uma declaração surpreendente de uma figura de alto escalão da Organização Mundial da Saúde (OMS) provocou estranheza e discussão entre médicos, além de alimentar os sempre inflamados embates nas redes sociais. A epidemiologista americana Maria van Kerkhove, do Programa de Emergências da instituição, afirmou, durante entrevista concedida na segunda-feira (8), que parece ser "rara" a transmissão do coronavírus por pacientes assintomáticos (que não apresentam sintomas). Nesta terça (9), a entidade prestou esclarecimentos.
Em seu perfil no Twitter, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou o burburinho em torno da declaração da médica para engrossar seu discurso contra o isolamento social. "Após pedirem desculpas pela hidroxicloroquina (medicamento que Bolsonaro defende para o tratamento até de casos leves da covid-19, mesmo com pesquisas científicas alertando sobre sua ineficácia e até quanto a possíveis graves efeitos colaterais para os doentes), agora a OMS conclui que pacientes assintomáticos (a grande maioria) não têm potencial de infectar outras pessoas. Milhões ficaram trancados em casa, perderam seus empregos e afetaram negativamente a economia", escreveu o presidente.
Luciano Goldani, infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, classificou a declaração de Maria como "muito estranha" em entrevista concedida ao programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, na manhã desta terça. Goldani citou que um recente e importante estudo, publicado em um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo, o New England Journal of Medicine, demonstrou claramente que indivíduos assintomáticos tinham uma enorme carga de vírus em suas secreções e que houve transmissão no grupo observado – internos de uma casa geriátrica.
— Não seria plausível a disseminação dessa doença pelo mundo se fosse transmitida só pelos sintomáticos — argumentou o infectologista.
Maria ainda acrescentou posteriormente, em sua conta no Twitter, que é importante diferenciar pacientes assintomáticos (identificados apenas por teste laboratorial), pré-sintomáticos (infectados que desenvolverão sintomas em seguida) e moderadamente sintomáticos.
Baseando-se em documentos divulgados pela OMS, a epidemiologista postou que "amplos estudos sobre a transmissão a partir de indivíduos assintomáticos são difíceis de conduzir, mas as evidências disponíveis (...) sugerem que aqueles que são infectados e não apresentam sintomas estão menos propensos a transmitir o vírus do que aqueles que desenvolvem sintomas". Sobre este tópico, Goldani comentou:
— A diferença do pré-sintomático para o assintomático é muito tênue. Poderíamos colocar os pré-sintomáticos no rol dos assintomáticos. É um certo jogo de palavras que não é realista. Não pode ser usado em um contexto de epidemia, em que temos que buscar condutas bem específicas. Essa afirmação não tem subsídio científico adequado.
Alexandre Zavascki, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), opinou que a manifestação de Maria foi "infeliz" e, isoladamente, "ficou péssima":
— Não temos nenhum estudo mostrando o que ela falou, mas temos demonstrada (cientificamente) a transmissão dos assintomáticos.
Zavascki explanou que, de modo geral, há indivíduos que não terão sintomas ao pegar uma infecção viral — eles contraem o vírus, transmitem-no sem nem saber que o tiveram e conseguem eliminá-lo. Não há nada que indique que, no caso do atual coronavírus, seria diferente, segundo o infectologista. O médico lembrou de epidemias anteriores, como as de Sars e Mers (também provocados por tipos de coronavírus): as maiores cargas de transmissão estavam entre o sétimo e o décimo dias (contados a partir do início dos sintomas).
— Isso ajudou a conter essas epidemias. As pessoas ficavam sintomáticas antes de transmitir (o vírus). Podia-se isolá-las. No início deste novo coronavírus, se pensou: será que é igual aos outros ou é mais como os vírus sazonais? — destacou o professor da UFRGS.
O infectologista acrescentou que, no caso do Sars-CoV-2, o vírus da pandemia em curso, antes de a pessoa se mostrar sintomática ela já está transmitindo o vírus. Dali a dois ou três dias, surgem a tosse e a febre, por exemplo.
— A questão é saber se os assintomáticos são um elo importante nesta pandemia. O que talvez ela (representante da OMS) queira ter dito é que quem está impulsionando a pandemia não são os assintomáticos, e sim os sintomáticos. Mas isso é uma afirmação que também extrapola o que temos de informação até o momento. Não tem por que não pensar que os assintomáticos não vão transmitir o vírus, mas dizer que é por eles que a pandemia está se disseminando também não posso afirmar ainda — completou Zavascki.
A OMS se pronunciou nesta terça para prestar esclarecimentos a respeito do que a epidemiologista Maria van Kerkhove havia dito na véspera.
— Estamos absolutamente convencidos de que a transmissão por casos assintomáticos está ocorrendo, a questão é saber quanto — declarou Michael Ryan, diretor de Emergências da entidade com sede em Genebra, na Suíça.
Maria, por sua vez, tratou o episódio do dia anterior como um mal-entendido, dizendo que se referia a um conjunto específico de países, com alta capacidade de testagem e rastreio, e a um subconjunto de estudos — alguns dados, alegou ela, ainda não foram publicados.