Depois de anos de conjecturas sobre seu lugar na história alemã, disputas sobre a procedência de seus objetos e atrasos na sua construção, o Humboldt Forum, atração no centro de Berlim projetada para ser o equivalente germânico ao Louvre ou ao Museu Britânico, finalmente foi inaugurado, com direito a cerimônia. Quer dizer, pelo menos na teoria.
Embora o evento tenha sido anunciado como a abertura oficial, o prédio de US$ 825 milhões permanece fechado à visitação por causa da pandemia. Na verdade, a “solenidade” foi digital, uma live que fez as vezes de tour modesto para exibir os espaços, com depoimentos breves dos curadores e outras figuras de destaque do projeto. O edifício deve ficar fechado até que o número de infecções caia a ponto de levar a prefeitura de Berlim a reabrir as instituições culturais, com sorte ainda em janeiro.
A ministra da Cultura, Monika Grütters, disse em discurso que o Humboldt Forum “merecia mais do que uma inauguração digital. Merecia uma festa, com público e programa festivo”. Foi um início anticlimático para uma das empreitadas culturais mais caras e ambiciosas da Europa.
Situado em um palácio barroco recentemente reconstruído, o Humboldt Forum exibirá milhares de artefatos etnológicos, incluindo esculturas maias e barcos de madeira do Pacífico Sul, muitos dos quais adquiridos durante a era colonial. Promoverá também mostras de arte asiática e itens da história local.
A princípio programado para a conclusão em 2019, o projeto enfrentou atrasos devido à construção excessiva; agora, a intenção é abrir o museu em segmentos ao longo dos próximos dois anos. A primeira fase inclui os espaços externos e o saguão, além de exposições sobre a história do lugar.
Críticas
Mesmo depois de inaugurado 18 anos depois da concepção inicial, seus líderes ainda lutam para superar o ceticismo e gerar entusiasmo entre o público.
Os críticos condenam o palácio repaginado como uma monstruosidade carregada nas tintas políticas; os ativistas, por sua vez, afirmam que a liderança da instituição pouco fez para esclarecer a origem de parte do acervo.
Grande parte da resistência dos berlinenses ao projeto parece derivar da nova construção.
O Berliner Schloss original, ou Palácio de Berlim, foi erguido pela dinastia real dos Hohenzollern, a partir do século 15, e demolido em 1950 pelo governo da Alemanha Oriental, que o substituiu por seu Parlamento. Depois da reunificação nacional, os políticos concordaram em demolir o prédio e construir uma cópia do Schloss original — decisão que para muitos ainda representa a tentativa de apagar a história da metade oriental do país.
Projetada pelo arquiteto italiano Franco Stella, a nova estrutura incorpora elementos modernos — interiores elegantes e uma fachada externa minimalista – às linhas barrocas do palácio original. Mas as resenhas iniciais não foram nada gentis: um artigo do jornal semanal Die Zeit o comparou a um “escritório de seguradora”; outro, da revista Der Spiegel, comentou acidamente que seu interior parecia “fácil de limpar”.
Além de tudo isso, a inauguração foi realizada depois de a imprensa revelar que os problemas com a construção eram mais sérios do que foi notificado, gerando comparações inevitáveis com o famigerado aeroporto local, aberto há poucos meses, após um sem-fim de reveses técnicos, em um atraso de nove anos em relação ao prazo original.
Erros
Um artigo de novembro no jornal Süddeutsche Zeitung afirma que, entre outros erros, as portas do Humboldt Forum foram feitas pequenas demais para permitir a passagem das redomas de algumas mostras e que o ar-condicionado defeituoso poderia pôr alguns artefatos mais delicados em risco. Em carta ao periódico, o museu refutou as duas acusações, alegando que a matéria continha “inverdades gritantes”.
Hartmut Dorgerloh, diretor do Humboldt Forum, disse em entrevista que qualquer comparação com o desastroso aeroporto berlinense era injusta, acrescentando que as avaliações negativas se deviam, em parte, à “malhação de Berlim”, tendência observada nos meios de comunicação de outras cidades, como é o caso do muniquense Süddeutsche Zeitung, que ataca a capital.
— Houve problemas, sim, mas todos contornáveis — garante Dorgerloh.
Hartmut Ebbing, parlamentar que faz parte da diretoria do museu, afirmou em entrevista realizada antes da inauguração que a “liderança do Forum tem muita sorte” de o coronavírus ter interferido nos planos de abertura do prédio ao público:
— Do contrário, não teria ficado pronto.
Dorgerloh admite que a estrutura tem alguns defeitos, mas que alguns tropeços eram previstos.
— O fato é que o prédio está pronto para receber os visitantes, mesmo que eles ainda não tenham permissão de entrar — completa.
Ele nega que os artefatos tenham sido expostos a qualquer tipo de perigo e que o ar-condicionado esteja com problemas, com exceção de uma área, onde estava sendo consertado.
Durante um tour pelo edifício, Dorgerloh exibiu as salas que estarão acessíveis depois que as medidas preventivas contra o coronavírus forem afrouxadas. Uma inclui um projetor imenso, com filmes sobre a história do local; outra, uma exposição arqueológica na fundação do prédio, com direito aos buracos imensos deixados por explosivos durante a demolição do palácio antigo.
Colonialismo no centro da polêmica
Parado no corredor do quarto andar que une várias galerias, o diretor do Humboldt Forum, Hartmut Dorgerloh, apontou para dois objetos que foram sobrepostos para simbolizar a disposição do museu em questionar a si mesmo. Um era uma escultura do rei Frederico I, monarca responsável pelas primeiras aventuras coloniais da Prússia, reino que mais tarde se tornaria a base da Alemanha unificada; o outro era uma escultura imensa do artista plástico baseado na Suíça, Kang Sunkoo, uma bandeira negra esvoaçante a meio mastro, “como lembrete dos crimes do colonialismo”, explica Dorgerloh.
O museu procura rebater as críticas dos ativistas anticoloniais, anunciando parcerias com as comunidades de origem de algumas peças e formando uma equipe de conselheiros internacionais.
E esse compromisso já enfrenta a primeira prova: recentemente, o embaixador da Nigéria na Alemanha, Yusuf Tuggar, requisitou oficialmente a devolução dos chamados Bronzes do Benim, esculturas espetaculares que foram saqueadas por tropas britânicas na região que hoje é a Nigéria e que deveriam ser exibidas no Humboldt Forum. Segundo Dorgerloh, a decisão cabe à outra organização, a Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, que cuida de parte da coleção.
Os apoiadores apostam que o Humboldt Forum vai conquistar o visitante que o vir pela primeira vez. Wolfgang Thierse, ex-parlamentar pelo Partido Social-Democrata, de centro-esquerda, que foi um dos primeiros defensores do museu, afirmou em entrevista que os debates públicos, como o que discute a relação da instituição com o colonialismo, são “parte natural de um projeto vibrante”.
Mas disse também que a resistência ao Humboldt Forum decorre dos horrores do regime nazista, que gerou o ceticismo em relação “ao patriotismo, às declarações bombásticas e aos projetos faraônicos”.
— Embora a Alemanha tenha o dever de analisar os terríveis crimes que cometeu no passado, também temos o direito de nos abrir para a cultura mundial — conclui.