Eu poderia dizer que faz calor, que há mosquitos, que a umidade deixa a pele grudenta e os cabelos desalinhados o dia todo. Eu poderia dizer que o celular é pouco útil (não há sinal), que a ausência de internet é angustiante e que a sensação, na maior parte do tempo, é de se estar em outro mundo, em que os nossos itens e necessidades mais essenciais são completamente dispensáveis. Mas seria de uma injustiça irreparável com a Amazônia, com o povo daquela terra e com o que sinto cada vez que fecho os olhos e me invade as narinas o cheiro da viagem. Estar na Amazônia me fez conhecer uma beleza inédita, foi uma aventura que me apresentou experiências inesquecíveis e me mostrou que a vida pode ser mais simples, mais leve e muito mais divertida.
Basta sair do ar condicionado potente do Aeroporto Internacional de Manaus para perceber que não é exagero quando o povo fala que a terra é quente. Quente e inconstante. Para cada hora de sol, os céus nos brindam com 20 minutos de chuva torrencial. Depois, o Astro Rei dá o ar da graça com a mesma força de antes, como se nada tivesse acontecido. E a gente cozinha no vapor. Manaus é feita de contrastes também nas ruas: gente muito rica, gente muito pobre, uma infinidade de pontos turísticos com infraestrutura de cidade grande e uma floresta com o que há de selvagem por perto.
Mas o contato direto mesmo com a tal da Amazônia (um lugar tão falado, por tantas perspectivas diferentes e que, no fim das contas, tão pouca gente conhece) a gente só sente quando entra em um barco naquele rio gigantesco, que, se fosse salgado, eu chamaria mar. A viagem entre Manaus e a pequena Maués (são 267 quilômetros em linha reta e 356 por rio) dura mais de 24 horas (na ida, a favor da correnteza). Na volta, quando o barco navega contra o rio, no relógio, o tempo é maior. Mas a saudade antecipada, a vontade de que o tempo se arraste para ver mais um ou dois botos acompanhando a embarcação faz a empreitada passar em um piscar de olhos. Também é possível chegar lá de avião, em voos fretados, mas não deve ter a mesma graça.
Maués é uma cidade típica do interior. Tem farmácia, padaria, banco, pequenos mercados e é rodeada de uma faixa de areia banhada pelo rio Maués-Açu e que o povo chama de praia. O fim de tarde nesse lugar apresenta um pôr do sol de dar inveja a qualquer Guaíba.
Muita gente mora na cidade e vive do pequeno comércio e da agricultura de subsistência. Mas cerca de 26 mil dos 50 mil habitantes construíram suas pequenas casas na periferia, que fica a pouco mais de uma hora de barco do Centro. Esse povo sim mora no meio da floresta e tira seu sustento da plantação do guaraná. E é o fruto que une todos, independentemente do local onde escolheram morar: em sendo de Maués, a pessoa invariavelmente toma guaraná, ou de manhã cedinho, para dar aquela energia para as lidas do campo, ou de noite - basta uma dose para espantar o sono.
A festa do ano
O grande acontecimento do ano, em Maués, também está ligado à fruta. É a Festa do Guaraná, que ocorre sempre no final de novembro ou no início de dezembro. Ele celebra o fim da colheita e reúne gente de vários lugares do Amazonas. Todo mundo vai de barco e deixa o transporte atracado na praia, onde o evento ocorre. O negócio é vestir roupas leves, um chinelo ou um tênis bem fechado e se deliciar com as atrações. Há bancas espalhadas pela areia, com uma diversidade incrível de produtos locais, que vão do artesanato a comidas típicas. Também há dois palcos grandes: um deles é só para as encenações de lendas e mitos sobre o surgimento da primeira planta de guaraná. As peças teatrais permeadas por números de danças impressionantes e decoradas com shows de fogos de artifício prendem a atenção do público que, em seguida, diverte-se ao som de shows de bandas e DJs locais, além de atrações nacionais de peso.
Enquanto o povo se alegra em três dias de festa, os guaranazeiros (plantadores da fruta) contabilizam os lucros da safra - o quilo é vendido por R$ 20, em média. E é nas propriedades desses trabalhadores que a gente consegue sentir de perto o que é a Amazônia. Quem não é nativo sua bicas, atrai os mosquitos e se besunta o tempo todo de repelente, enquanto é observado pelos locais que não escondem o sorriso no rosto diante de tamanho fiasco dos turistas.
Ritual e honra
Por lá, há quem viva muito bem, obrigada, sem energia elétrica e sem o noticiário nosso de cada dia. A preocupação é acabar com a raça da onça que ronda a casa e ameaça as crianças. Outro problema é o horário do jogo de futebol. É preciso bater bola cedo, enquanto os jacarés estão dormindo. Couro de cobra das grandes é enfeite na sala de casa. E as crianças estudam todas juntas, em uma pequena escola que não tem divisão por séries.
O negócio do guaraná passa de pai para filho, de tio para sobrinho e permanece em todas as gerações. É claro que há quem queira ir embora, pensando em um futuro melhor para os pequenos. Mas estes são a exceção.
E se você acha que os guaranazeiros vivem de um jeito muito distante do nosso conceito de civilização, saiba que há por lá tribos indígenas que ainda vivem como seus antepassados. Em Maués, conheci o Ademir de Oliveira da Costa, 36 anos. Ele deixou as ocas e foi morar na cidade há pouco tempo, mas não antes de passar por um ritual que é comum ainda hoje, por mais bárbaro que possa parecer. Chama Dança da Tucandeira. Para provar que são homens de verdade e que serão bons caçadores, meninos com mais de 10 anos colocam as mãos em luvas cheias com mais de 200 formigas tucandeiras e aguentam as picadas por 20 minutos. Depois, dançam por 24 horas para controlar a dor.
- Dói demais. É uma dor muito forte, não tem nem como explicar. Mas cura qualquer doença - acredita Costa.
Desde 1990, ele me contou, as mulheres também podem participar do ritual, que não é obrigatório. Mas é uma questão de honra.
Além de garantir o sustento do povo, o guaraná tem grande parcela de responsabilidade sobre a longevidade daquele povo. É o que garantem estudiosos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A instituição mantém um grupo de estudos sobre os benefícios da fruta lá em Maués. Assim sendo, resta a mim desejar muitos e muitos brindes da bebida típica daquele lugar e vida longa à Amazônia, para que eu possa voltar lá e sentir tudo de novo e para que, em lá estando, você possa entender o que esse texto quer dizer. Boa viagem.
*A repórter viajou a convite da AmBev