Uivos quase permanentes e repletos de dor, vindos de um terreno distante e ao longo de dias, fizeram a cantora aposentada Noemi de Paula, 59 anos, ir atrás do cão tristonho que estava em meio às casas da Lagoa do Bacupari, em Mostardas, no Litoral Norte. No caminho, ela soube pelos vizinhos que o animal estava doente, mas não tinha dono. O encontrou combalido, à espera de alguma ajuda. Sem saber o motivo da dor intensa do cachorro, e distante quilômetros de algum atendimento veterinário, Noemi passou aquela noite o embalando no colo para acalmá-lo. Um dia depois, o cão morreu de cinomose (doença por vírus que ataca os sistemas respiratório, digestório e nervoso). Desde então, a aposentada jamais voltou a se afastar dos cães de rua da região onde veraneia com a família.
Pelo contrário, a morte do bicho a aproximou de outra protetora dos cachorros na Lagoa do Bacupari, a moradora e dona de casa Ana Arrojo, 56 anos. Solitariamente, havia cinco anos, ela cuidava das cadelas e dos cachorros existentes no trecho localizado depois do pontilhão sobre o arroio de ligação entre as lagoas um e dois.
Abandonados pelos donos, muitos ainda no primeiro ano de vida, os cães se tornaram mais selvagens do que comunitários, por conta da escassez de comida no inverno, quando a comunidade praticamente fica vazia. Com a fome, obrigavam-se a lutar contra javalis, lontras e ratões-do-banhado. Na maioria das vezes, se não morriam, voltavam machucados para a região habitada — eles não atravessam a ponte até o trecho com moradores durante todo o ano e preferem continuar próximos às dunas, onde Ana e a família moram. Preocupada com a situação, ela os alimentava diariamente e fazia curativos nos feridos. Chegou a reunir 21 cães e cadelas. Virou referência para todos. Noemi, então, propôs uma parceria à vizinha.
— Começamos por amor. Passamos a alimentá-los com comida e ração, evitando que fossem machucados por bichos maiores. Depois, demos medicamentos para vermes e para evitar o cio. Mais tarde, começamos a castrá-los — recorda Noemi, há um ano ajudando na ação.
Para arrecadar os fundos necessários à ampliação dos cuidados — ainda são necessárias castrações —, Noemi produz artigos artesanais e os revende nos brechós realizados na própria Lagoa, no Quiosque do Tio Zé. Uma vez por mês, ela sai de Gravataí, onde mora, rumo a Bacupari para entregar a Ana 50 quilos de ração.
— Tivemos que fazer esta ação porque víamos pessoas maltratando os cães. Teve caso de visitantes jogando filhotes na lagoa para morrerem. Isso é terrível. Precisávamos fazer algo. Há quem exija que os cachorros sejam doados, mas eles se criaram aqui e não podemos, simplesmente, arrancá-los do local de origem — comenta Ana.
No dia 9 de fevereiro, Noemi voltou a Bacupari na companhia de Mel, uma cadela de aproximadamente dois anos, levada a Cachoeirinha para ser castrada. Na chegada à Lagoa, os cães Pretinha e Junior vieram ao encontro da companheira, mas a estranharam na roupa especial usada durante o tratamento pós-cirúrgico. Kira surgiu mais tarde e ganhou todo o carinho de Ana. Os outros cães — Corvo, Carmem, Lola, Mili, Leo, Osorinho, Sorriso e Chorão —, não apareceram até o final daquela manhã.
— Devem estar aproveitando a temporada de verão na casa dos veranistas. É o período de comida farta — comentou Noemi.
Morando em frente à casa da cantora aposentada, a vizinha Lourizeti Martins de Souza, 63 anos, é uma das que ajuda a controlar o vaivém do clã liderado por Júnior, o mais experiente dos cães de Bacupari. Acostumados com o carinho da moradora, eles passam horas na varanda ao lado dela.
— Costumam chegar pelas 10h30min, depois da caça, e sempre embarrados. Mesmo ganhando comida, o instinto fala mais alto. Eu xingo eles de brincadeira "vagabundos, onde vocês andam?", e eles lambem a minha mão e abanam o rabinho. Passam o dia deitados na varanda, dormindo. Sempre deixo água e ração fresquinhas. Eles são tudo para nós — conta Lourizeti, que costuma fotografá-los enquanto descansam.
Com os cuidados intensificados, a meta de Ana e Noemi é evitar novas ninhadas, as agressões aos existentes e o abandono de outros cães. Hoje, sete cadelas e cinco cachorros ainda vivem no trecho cuidado pelas duas.