Rumo de quem quer relaxar à beira-mar no verão, o litoral norte gaúcho, nos últimos anos, também tem se tornado um lugar atrativo para os apreciadores da mais típica bebida brasileira: a cachaça. Enquanto Maquiné é sede da premiada Bento Albino, Santo Antônio da Patrulha apresenta a história da bebida no Museu da Cachaça, além de contar com diversos alambiques, que fabricam desde a pinga até um produto mais elaborado, envelhecido em barris de carvalho. Quem prefere não se distanciar do mar, mas aprecia a bebida, pode ter uma degustação inusitada em Xangri-lá, onde uma sorveteria elaborou sabores que utilizam a cachaça em sua composição. Conheça um pouco mais dos lugares onde é possível entrar em contato com a cultura nacional através de um produto genuinamente brasileiro. Não custa lembrar, claro: se beber, não pegue a estrada. Ou vá em um grupo de amigos e garanta o motorista da rodada.
Museu conta a história da bebida típica
Quinhentos barris de carvalho cheios de cachaça formam os corredores por onde a história da bebida típica é apresentada aos visitantes em Santo Antônio da Patrulha. Situado no subsolo Parque da Guarda, uma área de lazer privada a 86 quilômetros da Capital, o Museu da Cachaça ensina sobre uma das principais culturas do município litorâneo: o cultivo de cana de açúcar e a produção da bebida.
– Montei o museu para que não se percam as origens. A cultura é o que nós temos de mais valioso – diz Carlos Tebaldi, diretor do Parque da Guarda e do alambique Guarda Velha.
Natural de Casca, no noroeste do Estado, o técnico agrícola mudou-se para Santo Antônio nos anos 1980, quando era funcionário de uma fumageira. Em 1998, depois de começar a atuar como empreendedor, fundou o alambique Guarda Velha. A cachaça foi batizada em homenagem ao primeiro nome do município que o adotou, Guarda Velha de Viamão, e, em 2005, chegou a receber reconhecimento nacional – atualmente, está com a produção parada, mas a bebida pode ser adquirida no parque.
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Anos depois, os terrenos ao redor do alambique foram usados para criar o Parque da Guarda – o ingresso hoje custa R$ 35. A área misturou piscinas, lago, pedalinho, churrasqueiras com atrações temáticas relacionadas à história do município. Construiu casas ao estilo açoriano, uma moenda antiga de tração animal – no local, há um boi que demonstra a moagem da cana à moda antiga, mas somente durante visitas agendadas, por alguns minutos – e um Santo Antônio de 15 metros, que acredita ser o "maior do mundo".
Dentro do contexto do parque, conta, o museu foi uma consequência "natural". Inaugurado em 2007, ele foi montado com os barris onde é envelhecida a Guarda Velha – para não afetar o processo, conta apenas com uma luz baixa, que fica acesa por um tempo prestabelecido para a visitação. No local, é possível encontrar ferramentas rudimentares usadas para a fabricação da cachaça, incluindo um alambique antigo, com mais de 80 anos. A visitação ocorre somente com agendamento prévio.
O pano de fundo do passeio é a história da cana de açúcar. Levada ao município pelos açorianos, no século 18, ela foi, por muito tempo, o mais importante produto de Santo Antônio da Patrulha, que ganhou fama como a cidade da cachaça e da rapadura.
Fora do Parque da Guarda é possível conhecer a produção de outros alambiques. Se em tempos idos o município chegou a estar entre os mais "industrializados" do Estado em função da grande quantidade de produtores de cachaça, contudo, agora restam poucos alambiques em atividade. Segundo a prefeitura, há um total de 15 em todo o município. A maioria produz a bebida de forma mais rústica, sem utilizar os procedimentos de destilação e envelhecimento das cachaças artesanais premiadas em competições.
Sorvete de cachaça é atração em Xangri-lá
Quem pensa que cachaça é água se engana, mas em Xangri-lá não é de todo errado dizer que cachaça é sorvete. Desde 2015, a sorveteria Dolcelatto, no centro da praia, disponibiliza dois sabores de sorvete feitos com o destilado: ouro crema e prata sorbet.
– Eu já fazia tinha feito sorvete de espumante, de cervejas especiais. Aí veio o convite para fazer o da cachaça – lembra Carlos Brandão, proprietário da sorveteria.
A ideia partiu dos donos da cachaçaria Água de Arcanjo, produzida em Maquiné. Interessado no desafio, Carlos trabalhou por alguns meses na receita, até que chegou aos sabores desejados. A prata virou um sorbet (mais leve) à base d'água, enquanto a ouro, envelhecida em barril de carvalho, ficou mais cremosa com a base de leite.
– Misturar leite com cachaça é tudo que as avós diziam que não podia, né – brinca.
Apesar do estranhamento inicial, os sabores preparados com cachaça são quase como quaisquer outros. A única diferença é significativa: eles contêm teor alcoólico, o que faz com que o dono nem sempre os deixe à vista no balcão – para comprar, é necessário ser maior de 18 anos e apresentar um documento de identidade. Pelo mesmo motivo, não é recomendável pegar o volante após provar esses sabores.
Enquanto o ouro crema tem cerca de 15% de teor alcoólico (um pote pequeno equivale ao consumo de três latas de cerveja, segundo o fabricante), o prata sorbet é ainda mais alcoólico: 18%. Uma dica para equilibrar sabores – e manter o equilíbrio depois de provar – é combiná-los com outras opções da casa. Doce de leite e ganache, os carros-chefe da casa, são os mais recomendados pelo sorveteiro para a harmonização.
Bento Albino: cachaça com jeito de uísque acumula prêmios
Cachaça é uma bebida barata, que faz arregalar os olhos, desce queimando pela garganta e só serve para fazer caipirinha. Ou não. Localizada em uma fazenda em Maquiné, a pouco mais de um hora de Porto Alegre, a Bento Albino trabalha apenas com a elite da bebida mais típica do Brasil: produtos cuidadosamente destilados, envelhecidos em barris de madeiras especiais, cujo sabor e aparência lembram mais um bom uísque do que aquela caninha com jeito de álcool etílico que fez a má fama do drink para muita gente.
Consolidada há mais tempo em outros Estados brasileiros – e em municípios gaúchos –, a cultura da cachaça, digamos, gourmetizada, teve um começo despretensioso em Maquiné. Ao adentrar o escritório atípico, onde canetas e papéis dividem espaço com garrafas dos mais diversos modelos, Luzia Rodrigues de Abreu, 66 anos, vai reto em direção à parede onde se encontram um desenho e uma fotografia de um senhor de cabelos brancos e chapéu.
– Foi tudo por causa dele. O alambique era o sonho do velho – conta enquanto passa a mão sobre a ilustração colorida.
Pai de Armando de Abreu, marido de Luzia, o senhor em questão é o próprio Bento Albino, nome da marca que nasceu no começo dos anos 2000 – cuja cachaça o homenageado, já falecido à época, nunca chegou a experimentar. O alambique montado na fazenda do filho era um tributo a um desejo antigo do patriarca, mas também um hobby do médico, que vive em Porto Alegre.
Atual responsável pela Bento Albino, Luzia repudiava a ideia. Acreditava que a aventura estava fadada ao prejuízo, e tinha razão. Em 2004, com o negócio no negativo, a enérgica professora aposentada foi incumbida da missão de recuperar o dinheiro perdido.
– Sabia que isso ia acontecer (o prejuízo). Aí eu vim ajudar. Quando a gente se aposenta é assim: logo arrumam uma coisa para a gente fazer – brincou.
A mudança de comando deu tão certo que a imagem serena de Bento Albino, assim como o resultado da produção do alambique, já são reconhecidos Brasil afora e no Exterior. Até o fim de 2016, foram sete prêmios nacionais e sete internacionais. Queridinha dos donos e da mestre alambiqueira Márcia Dias, a extra premium (envelhecida por seis anos em barril de carvalho) ficou em primeiro lugar no Concurso Mundial de Bruxelas, uma das principais plataformas de reconhecimento de destilados do mundo, em 2010, 2014 e 2016.
O reconhecimento veio aos poucos – as primeiras premiações foram em 2010 –, e não parou de aumentar. Atualmente, o produto é vendido em diferentes Estados, em bares da Capital, no Mercado Público e no próprio alambique, onde os preços variam entre R$25 e R$ 70 a garrafa. Além das láureas obtidas em feiras no Brasil e no Exterior, o trajeto contou com parcerias inusitadas, por vezes involuntárias. Tempos atrás, folheando o material publicitário de uma famosa casa noturna de entretenimento adulto de Porto Alegre, cuja dona, uma celebridade local, é cliente do alambique, Luzia deparou com uma foto da Bento Albino estampada em um página inteira.
– Tava ali: no meio de um monte de mulher pelada, uma foto da nossa garrafa. Ela colocou por conta. Achamos legal, mas a foto não era boa. Mandamos umas melhorzinhas para eles usarem – diverte-se a dona.
Processo de produção é trabalhoso
A diferença de qualidade que se expressa também no preço a que são vendidas as cachaças especiais, pode ser observada em todas as etapas da produção. Todos os destilados da Bento Albino são feitos com a cana plantada no local ou em terrenos próximos, adquiridos especialmente para essa finalidade. Como a colheita ocorre apenas uma vez por ano, geralmente no inverno – quando a planta fica no ponto ideal de doçura –, a produção também ocorre em períodos específicos. Atualmente, são cerca de 10 mil litros anuais.
O processo é trabalhoso: primeiro, o caldo da cana é misturado com água até atingir o teor de açúcar mais adequado à produção da cachaça. Depois, sobe por canos até os tonéis de fermentação, onde repousará antes de ser destilado – na Bento Albino, o procedimento é feito em um alambique cobre, trazido de Minas Gerais.
Na destilação é que ocorre o pulo do gato. Em vez de utilizar todo o líquido destilado, a alambiqueira aproveita apenas o chamado coração da cachaça, descartando a cabeça e a cauda (ou o começo e o fim da destilação), partes onde se acumulam substâncias tóxicas – que causam, entre outras coisas, aquela dor de cabeça após o consumo. Esse cuidado é o que mais encarece o produto: de 1 mil litros que vão para o alambique, apenas 120 são aproveitados depois do processo.
– É um trabalho caro, mas para fazer com qualidade, tem de ser assim – conta a proprietária, que visita o alambique semanalmente.
A estrutura do alambique, aberto à visitação de segunda a sábado, é enxuta: quatro funcionários dão conta de todo o trabalho. Em uma sala escura ficam armazenados cerca de 200 barris, quase todos em carvalho, onde são envelhecidas as cachaças ouro – a chamada cachaça prata, incolor, fica em tonéis de aço inox, em frente ao galpão. A maioria repousa por três anos antes de de ser engarrafada.
Mestre alambiqueira envolve-se em tudo
Nascida e criada na roça, Márcia Dias, 43 anos, entrou na Bento Albino ainda no começo da empreitada, a convite do primo e proprietário do negócio, Armando. Àquela época, porém, o único contato que tinha com o alambique era visual.
– Ele me chamou para trabalhar, mas era para atender telefone, limpar, essas coisas – lembra.
Apreciadora de ocasião de cachaça nos churrascos familiares, ela aprendeu o processo de fabricação assistindo ao trabalho do antigo alambiqueiro. Ao perceber o interesse e a aptidão de Márcia, o casal de donos resolveu apostar no seu talento, patrocinando cursos para que ela se aprimorasse. Em 2006, ela tirou o certificado de mestre alambiqueira.
Mais que a criadora das cachaça premiadas da Bento Albino, Márcia é uma espécie de guardiã do local. A casa onde mora com o marido fica na fazenda, em frente ao alambique. Ela envolve-se em quase todo o processo: participa desde a extração do caldo de cana até a venda dos produtos, passando pela colocação do rótulo nas embalagens. De jeito simples, discorre com propriedade sobre todas as minúcias de seu trabalho. Sua expressão muda apenas quando reflete sobre a dimensão do reconhecimento recebido nos últimos anos.
– Imaginar que uma coisa tua, que tu fez, ganhou um prêmio desses… Nem dá para acreditar – suspira.