O mar está logo ali na frente – nos últimos dias, convidativo como as águas do Caribe. Só que antes de pisar na praia, é para uma calçada que se voltam os olhos daqueles que circulam pela Avenida Beira-Mar, em Atlântida. Junto à Rua Juriti, todas as cores se unem em uma esquina feita de mosaicos de azulejos.
Ganharam forma animais marinhos, flores, uma desastrada partida de futebol, um ponto de interrogação (que é para pensar na vida), e mais uma série de desenhos abstratos. Já disseram por aí que são obras de um tal "Gaudí do Litoral Norte" – e elas podem mesmo lembrar os mosaicos do arquiteto catalão. Mas o que está por trás de cada caco de cerâmica são a dedicação e a sensibilidade de uma mulher de 88 anos, a Senhora da Calçada.
Ela tenta não aparecer. Esquiva-se das fotos. Não quer que pensem que os desenhos junto à rua foram feitos para chamar atenção. Só que, inevitavelmente, eles chamam. E talvez chamassem ainda mais se os donos dos pés que por ali passam soubessem que esta calçada foi feita, há três anos, em um gesto solidário.
– A antiga já estava esburacada e eu ficava com medo que meu vizinho, bem idoso, pudesse tropeçar na frente da minha casa e se machucar. Decidi fazer uma calçada nova. E a minha filha deu a ideia de enfeitá-la. Então, fizemos juntas – conta a senhora.
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A filha é escultora. A mãe formou-se na primeira turma de curso superior do Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul. Talento, portanto, não falta. Mas, ainda assim, decidiram que era necessário fazer um curso para aprender a fazer os mosaicos. A primeira professora procurada negou-se a dar aulas, considerava a aluna mais velha "velha demais". A segunda aceitou. E, bem, a Senhora aprendeu direitinho. Passou meses fazendo as peças em sua casa, em Porto Alegre, no tamanho e com os motivos que vinham à mente. A filha, também moradora da Capital, fez o mesmo.
Na temporada, trouxeram as cerca de 100 peças para a praia e contrataram um pedreiro que refizesse a calçada em concreto. Foi só durante a finalização e assentamento dos mosaicos (trabalho que levou um mês do verão de 2014), que mãe e filha foram conhecer as obras uma da outra. Quem não pôde conferir o resultado final foi o pedestre a quem a calçada era incialmente dedicada.
– Ele não chegou nem a ver. Morreu antes. Mas a calçada ficou – conta a octogenária, já achando graça da história.
Parte da matéria-prima dos mosaicos vem de uma série de antigos trabalhos da Senhora da Calçada. Por três décadas, ela foi professora particular de pintura em cerâmica e reunia, em casa, pilhas e pilhas de azulejos finamente decorados em tinta. É claro que as peças tinham o seu valor. Mas para aqueles que chegam aos 88 anos sabendo que ainda têm muito a viver pela frente, não há problema nenhum em fazer com que as obras do passado deem lugar às do futuro. E lá foi ela dar uma bela de uma martelada em cada um dos azulejos:
– Quebrei tudo. Desocupou um armário e virou uma calçada.
Gostou da coisa. Dias desses, na casa da praia, percebeu que alguém havia quebrado um dos quatro ladrilhos que formavam uma reprodução das ruínas de São Miguel das Missões, pintada por ela mesma. O anônimo havia tentado reparar o dano, esforçando-se para colar os pedacinhos novamente. Só que deixou as torres da igreja voando. Pior: deitadas no céu.
– Não sei quem foi. Tem coisas na vida que é melhor nem saber. Então sabe o que fiz? Fui lá e dei uma martelada. Depois tentei reconstituir. É uma maneira que tenho de ocupar a mente e me sentir útil. Meus filhos (são quatro) dizem para eu tomar cuidado com isso e aquilo. Eu só respondo: meus filhos, enquanto eu puder, deixem-me trabalhar – diz.
Disposta e tagarela, ela não consegue parar quieta. Após o verão dos mosaicos, o jardim da casa virou o foco dos trabalhos. E aí era aquele espetáculo: plantas e ladrilhos enfeitando a esquina. Nesta temporada, no entanto, um dos vizinhos já percebeu que as flores não estão recebendo o mesmo cuidado de outrora e mandou que a filha avisasse a Senhora da Calçada que "ela está muito relaxada com seu jardim, que só pensa em sua calçada". Ele até tem razão, mas ela explica o que ocorreu neste verão:
– Fui surpreendida. Para fazer o calçamento da Beira-Mar, a prefeitura jogou todas as pedras da rua em cima dos mosaicos. Boa parte deles ficaram danificados, teve um que se perdeu por inteiro. Então estou tendo de repará-los.
"Que sorte teria o mundo se a conhecesse", diz vizinha
Por sorte, um dos desenhos de que ela mais gosta ficou intacto. Ele estava sendo montado em fevereiro de 2014, quando uma mulher e um menino passaram a observá-la nos trabalhos. A senhora chamou o garoto, perguntando se ele queria ajudá-la. Assim, fizeram em conjunto um mosaico que é meio sol, meio lua. No ano seguinte, parou um carro em frente à casa. Dele, saltou um menino que foi correndo até o mesmo mosaico. Queria ver como estava a sua obra.
– É por momentos assim que eu fiz e continuo cuidando disso. Não foi para mostrar para ninguém – repete a artista.
Dia desses, uma veranista com "sotaque estrangeiro" disse à dona da calçada que, neste verão, estava passando por ali todos os dias. E que todos os dias ela se sentia "abençoada" justamente por isso: por poder passar por ali. E assim é: se a senhora está pela calçada, é difícil que um transeunte a enxergue sem lhe dar os parabéns ou agradecer por ter feito um lugar tão bonito para se passear. Ontem mesmo pela manhã, uma mulher não se conteve:
– Essa é a nossa vizinha mais notável, a que nos alegra com sua colorida presença. Que sorte teria o mundo se todos pudessem conhecê-la.
Pois bem. O sobrenome da Senhora da Calçada é Pettini. O nome dela é Beatriz. E está lá no dicionário do significado dos nomes aquilo que a esquina da Beira-Mar com a Juriti já diz: "Beatriz, aquela que traz felicidade."