Devotada à religião, a vida modesta e de bondades concede aos padres uma aura celestial, quase desconectada dos prazeres mundanos, motivando todo tipo de questionamento dos fiéis. Há paroquianos que se surpreendem ao descobrir que os religiosos também existem sem a batina, usam celular, bebem uma cervejinha, jogam futebol. Durante o veraneio, quando dezenas deles se preparam para um descanso à beira-mar de Cidreira, em uma colônia de férias exclusiva para sacerdotes, a curiosidade que os ronda se acentua: padre tira férias? Padre vai à praia? Vai à praia na hora em que tem bastante gente? E olha as moças de biquíni?
Recém-chegado à Casa Tiberíades, mantida por uma associação que congrega três dioceses do Rio Grande do Sul, Marcus Vinícius Kalil Ferreyro, 46 anos, dá risada das estranhezas manifestadas pelo rebanho. Pingando água após um mergulho na piscina térmica inaugurada há poucos dias, o padre da Capital comenta:
- Padre não caiu do céu, padre é um ser humano. As pessoas idealizam demais, pensam que temos uma vida misteriosa. Escuto pagode, gosto de ler gibis. É engraçado as pessoas pensarem que a gente tenha de viver confinado.
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O residencial de três pavimentos, inaugurado em 1982, assemelha-se a um hotel. Sócios pagam R$ 50 pela diária, com direito a cinco refeições. No ano da ordenação, um agrado de boas-vindas: a hospedagem é gratuita. Não sócios e visitantes de outros Estados ou países também são aceitos. São 62 quartos individuais com banheiro e singela mobília: cama de solteiro, armário, mesa e cadeira. Para uso comum, há sala de TV, cancha de bocha e capela, onde se improvisam missas.
Trata-se de um ambiente onde reina a "fraternidade presbiteral", como define o portal da Arquidiocese de Porto Alegre. E é justamente a possibilidade de estar entre iguais que atrai a maioria para o sagrado repouso: eles conversam sobre os desafios da sociedade e das paróquias, política, Grêmio e Inter - nas camisetas, os símbolos da dupla são tão frequentes quanto as estampas com personagens bíblicos. Grande parte dos hóspedes fatia os períodos de folga, aproveitando a orla entre segunda e quinta-feira e retornando às cidades de origem nos finais de semana, quando se acumulam missas, casamentos e batizados.
- Padre tem que descansar. Pesquisas dizem que é a profissão mais estressante que existe. Moramos no emprego, estamos 24 horas ao dia à disposição, sempre correndo atrás da máquina - diz Tarcísio Rech, 53 anos, da Igreja Nossa Senhora dos Anjos, de Gravataí.
Horários estabelecidos apenas para as refeições
Os primeiros veranistas de janeiro acabaram de encerrar uma das épocas mais estressantes do ano. Às vésperas do Natal e da Páscoa, datas que marcam o nascimento, a morte e a ressurreição de Cristo, a procura por confissões é intensa, o que demanda horas exaustivas de escuta e aconselhamento. Agora livres de compromissos, de bermudas e chinelos, os religiosos acordam um pouco mais tarde, estendem-se na roda de chimarrão, exercitam-se, jogam canastra até a madrugada.
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A piscina, local de algazarra com as boias, tornou-se viável graças a contribuições espontâneas - nem os abnegados padres se contentavam com o mar bravio, enregelante e turvo do litoral gaúcho. Só há horários estabelecidos para as refeições, precedidas de uma oração conjunta. Na última segunda-feira, quando a reportagem de ZH passou o dia na Tiberíades, a sesta avançou pela tarde - às 16h, só se ouvia o barulho do mar nos corredores.
- A segunda é o domingo dos padres - brinca Ildomar Danelon, 45 anos, da Diocese de Osório.
Com wi-fi livre, padres não ficam distantes dos fiéis
Com acesso à rede wi-fi em todo o prédio, os veranistas acessam o site do Vaticano e aplicativos de orações, resolvem uma ou outra pendência da paróquia por e-mail e navegam nas redes sociais. Depois de um sobressalto, em dezembro, na paróquia onde atua - bandidos e policiais se enfrentaram a tiros dentro da Igreja Medianeira, na Capital -, Luiz Ricardo Xavier, 55 anos, desembarcou em Cidreira para uma breve pausa. Marcou o início das ansiadas férias postando aos amigos de Facebook uma foto do mar de Angra dos Reis (RJ).
- É para pensarem que fui para um mar "tchan"! - diverte-se Xavier. - Gosto daqui. Nosso litoral é bom - acrescenta.
A presença ativa na internet, a disponibilidade e o bom humor aproximam o religioso dos fiéis. Via chat, o padre recebe pedidos de reza e de conselhos para crises no casamento, dramas existenciais e casos de abuso de drogas. Já acudiu até quem ameaçava cometer suicídio. Os apelos urgentes são resolvidos online, mas sempre há convite para encontros presenciais.
- Star Wars é bom, mas "star" na igreja é melhor ainda - pregou em uma missa recente, em referência ao sucesso dos cinemas.
Entre os frequentadores mais antigos da Tiberíades está Francisco Hochscheidt, 75 anos. Nos quase 47 anos de trajetória eclesiástica, padre Chico, de Santa Cruz do Sul, não compareceu em apenas três temporadas. Uma das ausências foi motivada por um assalto que quase lhe custou a vida. Há 20 anos, no Mato Grosso, ele foi mantido refém em casa por bandidos que roubaram objetos e dinheiro. Antes de fugir, um dos ladrões disparou a arma contra a cabeça da vítima. A bala feriu a orelha esquerda do padre, avariando-lhe também a audição. Convocado à delegacia dias depois para que tentasse reconhecer um suspeito, Chico provocou espanto no criminoso:
- O senhor está vivo? Eu nunca errei um tiro!
Com o abalo no orçamento, Chico, que credita o milagre da sobrevivência a Nossa Senhora, teve de cancelar a viagem ao Sul no verão seguinte. Vinte anos depois, está ocupando um quarto privilegiado, mais amplo que os demais, de frente para o mar, onde mantém as duas horas habituais de leitura por dia - nestas férias, estuda a encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, sobre questões ambientais.
Não troca a praia por nenhuma outra. Esteve em Balneário Camboriú e Canasvieiras, em Santa Catarina, que não o cativaram.
- Vou voltar para minha Cidreira que é melhor - desdenhou.
Correria e diversão na beira da praia
O dia que começou no chimarrão de Chico - às 6h, ele sempre tem a cuia pronta para recepcionar os colegas, à medida em que despertam - se encaminha para o anoitecer com uma partida de futebol à beira-mar: padres de camiseta versus padres sem camiseta. A turma enfrenta a ventania e os golpes de areia revolta em nome de uns minutos de correria e diversão.
- Nos nossos jogos, todo mundo sempre ganha - garante o bispo de Cachoeira do Sul, Remídio Bohn, que até minutos antes trajava calça comprida e camisa de colarinho clerical, trocadas por bermuda e camiseta com a imagem de Jesus.
Com as lufadas, a bola não respeita a direção dos chutes e ganha embalo - em um lance empolgado, voa para muito além das demarcações do campo improvisado. Um dos jogadores sai em disparada, mas não consegue vencer a distância até a pelota, que se afasta cada vez mais com o vendaval. O padre chega a ficar pequenino na visão dos companheiros, perdendo-se na imensidão da praia quase vazia, e então um carro parte para auxiliar no resgate. Recuperada, a bola volta com um furo, murchando, para surpresa e galhofa do grupo.
- Devia ter alguém de unha comprida - palpita Danelon.
Já soou a campainha para o jantar, e a pelada termina com pose para a foto. O placar confirma a predição do bispo Remídio: ninguém perdeu. Empate em 4 a 4.