Nos últimos dois anos, o esporte que mais deu alegrias ao país foi o surfe. A geração batizada de Brazilian Storm (a "tempestade brasileira") teve Gabriel Medina como pioneiro, campeão mundial em 2014. Em dezembro último, Adriano de Souza, o Mineirinho, consagrou sua trajetória de dificuldades ao terminar 2015 no topo do mundo.
Ao sair do mar em Pipeline, no Havaí, com o nome para sempre na memória das ondas, Adriano lembrou dos desafios financeiros durante a infância no Guarujá, em São Paulo:
- Quero lembrar do meu irmão Angelo.
Isso tudo deve-se a ele. Ele comprou a minha primeira prancha por R$ 30, que era muito dinheiro para ele. Hoje estou no topo do mundo graças a R$ 30.
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História muito parecida com a de três garotos do Litoral Norte, que sonham em viver de um esporte até há pouco sem grande atenção da mídia - além de ser, tradicionalmente, mais popular em classes abastadas. Se no circuito mundial a tempestade nacional está consolidada, parece que, aos poucos, um toró ganha força em Tramandaí.
Uma turma que faz chover mesmo com um mar que não ajuda. Que consegue patrocínio batendo de porta em porta - em imobiliárias, temakerias, academias e pizzarias. Que viaja para Santa Catarina atrás de treinamento em ondas melhores tendo de limpar quartos de uma pousada para se bancar. Adolescentes que vivem o esporte amador como se estivessem em uma final no Havaí. E que começaram também com pranchas usadas, de menos de R$ 100, emprestadas ou doadas.
- O título do Mineirinho teve um impacto grande aqui em casa. Na história dele dá para ver a força de vontade, a batalha. Ele mostrou que todo mundo pode, é só querer e acreditar - conta, em Tramandaí, Maria Veiga, doméstica, mãe de Ernani Júnior, 16 anos, segundo do ranking gaúcho na categoria mirim.
Ernani forma um trio de promessas do surfe com Vinícius dos Santos e Alessandro Souza, ambos de 16 anos. Amigos há tempos, os três, em 2015, tornaram-se colegas de equipe na Gift Surfboards, que apoia com acessórios, três pranchas (todas acima de R$ 1 mil) e cerca de R$ 5 mil em consertos ao ano. Reparos necessários, pois essa gurizada quebra tudo - nas ondas e, às vezes, fora delas.
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Na tarde do último dia de 2015, com um vento sudeste de mais de 30 quilômetros por hora, ondas balançadas de formação completamente irregular, típicas do nosso litoral, eles mostraram que são atletas de talento. Enquanto os outros surfistas próximos à plataforma de Tramandaí mal conseguiam pegar uma onda, em poucos minutos o trio entrou em todas as que vieram, dando um show de rasgadas, aéreos e outras manobras.
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Ao olhar da areia, parecia impossível alguém deslizar por uma onda em meio àquele liquidificador de água salgada. Para conseguir executar alguma coisa, precisavam "matar barata", gíria dos surfistas que descreve o movimento de pressionar o pé da frente com intuito de aumentar a velocidade em um mar com pouca força. Mas foi tanto ímpeto que a câmera à prova dágua grudada em uma das pranchas pelo fotógrafo Félix Zucco foi parar no fundo do oceano - importante dizer que ela estava presa com dois suportes, um só para reforçar a segurança, mas não foi o suficiente.
Surfe adaptado para o chocolatão
Os próprios meninos dizem que essa é uma característica da sua forma de surfar, adaptada ao chocolatão gaúcho. Precisam ficar embalando nas ondas que quebram rápido e dão pouca janela para manobras. Quando partem para competições em ondas mais lisas e tubulares, sentem dificuldade, precisam se reciclar para competir com quem é acostumado às benesses de uma onda perfeita. É de se imaginar o que fariam se tivessem crescido e aprendido em um tipo de mar mais convidativo.
Ernani, por exemplo, começou com uma prancha de bodyboard (modalidade em que se surfa deitado) que a mãe ganhou do dono da casa onde trabalhava. Aos cinco anos, já ficava em pé e segurava na mão a cordinha que deveria estar presa ao braço, usando-a para dar direção. Depois, a muito custo, conseguiu comprar a primeira prancha de surfe, toda remendada com fitas adesivas. Aos nove, no primeiro campeonato, ficou em segundo lugar - ele recorda que competiu com meninos cujos pais os empurravam nas ondas, no raso, enquanto ele ia ao chamado outside (última arrebentação, mais ao fundo, que no Rio Grande do Sul costuma ficar longe da areia).
O perfil do adolescente, que tem apelido de Chewbacca (o personagem de Star Wars), em função da cabeleira mantida desde muito novo, é de alguém que sabe muito bem o que quer. Está claro na sua cabeça que, para ser um profissional, não basta ser o melhor na água. Ele se articula bem, é humilde, batalha pelo sonho. Quando não está praticando no mar, faz treinamento funcional com os colegas, novidade que chegou após ganhar apoio de uma academia. Aproveita o tempo livre enviando currículos para tudo o que é lugar. Assim, conquistou o suporte de diversos empresários de Tramandaí.
- Hoje é preciso ser completo, não basta ser bom, tem que saber se expressar. Muitas marcas grandes só querem ganhar em cima do marketing do atleta, não dão o verdadeiro apoio. É só olhar a minha prancha (com adesivos dos patrocínios): tem três marcas de surfe, o resto é tudo comércio - afirma Ernani.
Um dos proprietários da Gift Surfboards, Tiago Waschburger, o Costelinha, por vezes serve de intermediário entre as mães dos atletas para que eles mantenham o foco na escola e não aprontem fora dela. Como a loja virou ponto de encontro dos surfistas da equipe, assume também o papel de dar instruções e conselhos.
- As famílias, na maioria, ainda não acreditam, não deixam os filhos encarar o surfe como esporte, o que não é o caso desses guris. A chance de alguém com potencial abandonar é de mais de 70%. No Estado, nenhum atleta vive do surfe. Por isso, tentamos sempre ajudar quem é daqui - explica Costelinha, que resolveu criar uma regra para o time: quem repetir o ano na escola ganha uma prancha a menos no pacote a que tem direito.
Pranchas sem bico ou sem quilha
Ernani, o Chewbacca, é o víde-líder do ranking mirim do RS
Vinícius dos Santos, apelidado de "abóris", uma versão curta de aborígene (ele tem a pele escura e olhos verdes), só obteve a autorização da mãe para dar as primeiras remadas aos 12 anos porque a pegou desprevenida. Foram várias negativas até a última tentativa durante uma festa de aniversário, quando Marinês Santos, faxineira de 33 anos, estava distraída.
- Eu estava tomando uma cervejinha e, depois de tanta insistência, acabei deixando ele ir com um amigo mais velho. Tinha muito medo de que algo acontecesse no mar - revela Marinês. - Eu acho que o surfe é um caminho, mas ainda penso que ele tem de trabalhar, pois sou de família bem humilde. Mas eu sempre digo para ele: luta pelo teu sonho porque eu não tive tempo de lutar.
Ernani, de morey, aos 4 anos, com as três irmãs
Há um esforço grande, um desejo das famílias de se mudar para Santa Catarina, para ajudar na trajetória dos filhos. Mas as dificuldades econômicas, até o momento, impedem a transferência. A família de Vinícius saiu da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, para o litoral, segundo Marinês, para que os filhos "não se envolvessem com coisas erradas". Maria, a mãe de Ernani - guri que dorme na sala da casa (cheia de troféus) onde vive com três irmãs (Eduarda e as gêmeas Gabriela e Rafaela) - , também alimenta esse sonho, mesmo sem ainda conhecer o Estado vizinho.
- Temos as dificuldades que todas as pessoas humildes, sem condição financeira privilegiada, têm. O surfe, hoje já considerado um esporte, é de elite. Tudo é muito caro: os equipamentos, a estrutura para eles viajarem para lugares com condições melhores. Esse envolvimento de algumas poucas lojas daqui é bem importante. Cada vez que eles competem e vencem, levam o nome do município - aponta Maria.
Ernani diz que alguns políticos de Tramandaí já o procuraram para dar alguma ajuda. O colega de equipe, Alessandro da Silva, o Zoio do Bico Cerrado, apelido recebido quando surfava com uma prancha sem a ponta (não tinha como comprar outra), também vive as dificuldades para poder ir para Santa Catarina atrás de opções melhores de treino.
- Meu padrasto é marceneiro na Praia do Rosa, então já fui para lá e colocava um colchão em cima das chapas de MDF para dormir, por falta de espaço. Lá, podemos ver o que a gente erra. Aprendemos olhando - conta Alessandro, que, além da prancha sem bico, também já precisou pegar onda com uma sem quilhas.
Vinícius conta que os amigos estão com planos de passar um período deste verão na Praia do Rosa para treinar. Mas, com pouco dinheiro, ainda não sabem se poderão ficar muito tempo:
- Conseguimos um espaço para dormir em barracas, com um conhecido de uma pousada. Queremos ajudar na limpeza para conseguir algum dinheiro e ficar o máximo possível por lá.
Em junho deste ano, associações de surfe de vários municípios do litoral gaúcho se uniram para criar a Liga Rio-grandense de Surfe (LRS), que realizará a Copa Rio-grandense de Surf Amador e também competições profissionais no Estado. Segundo o presidente da LRS, Carlos Freitas, a Liga surgiu devido à necessidade de promover o esporte.
- Nosso Estado precisa de união e ação para que o surfe cresça de verdade. Temos de aproveitar o momento em que os brasileiros estão obtendo excelentes resultados no cenário mundial e desenvolver o esporte local. Queremos que os surfistas possam contar com a realização de competições com julgamentos corretos, estrutura voltada a eles e uma organização que quer o melhor para o surfe - diz Freitas.
Esses guerreiros de Tramandaí colocarão as pranchas na água ainda neste mês para o primeiro evento da LRS de 2016, nos dias 24 e 25, na praia onde moram. Competindo em casa, têm tudo para continuar o caminho da profissionalização. Talento e obstinação não faltam.