Por Charles Kiefer, escritor
Noites de lua cheia, povoadas de mulas sem-cabeça, boitatás, lobisomens e outros seres alimentam as memórias da infância e a imaginação do ficcionista, que só foi conhecer o mar aos 22 anos
Nenhum leitor acertou que a criança da página 39 da Zero Hora de sexta-feira era Charles Kiefer.
Infância não existe, infância é uma invenção de adulto.
Quando leio sobre a infância de alguém, sempre me pergunto: E como seria a descrição desse passado idílico se quem a tivesse escrito fosse uma criança?
Talvez, para uma criança, o mar não seja tão belo, a praia não seja tão amigável, a noite não seja tão pacífica...
Adulto, percebo agora que não tive essa infância maravilhosa que todos tiveram. Só fui conhecer o mar aos 22 anos. E o que senti foi uma angústia muito grande, aquela água não tinha fim, aquela areia irritava-me, aquele sol torrava a minha pele, produzindo-me grandes febres e dores, atenuadas por pomadas e insônias.
A infância que tive foi atrás de uma enxada, capinando inço nas lavouras de soja dos meus avôs, catando osso para vender no frigorífico, lavando dúzias de roupas por semana para que minha mãe liberasse, a mim e a minha irmã, as entradas da sessão da tarde de domingo no Cine Imperial, no centro de Três de Maio, que hoje deve ser uma loja de produtos da China.
Que infância poderia eu inventar agora?
Na época, nem me dei conta que fazia trabalho infantil, que eu podia estar na praia, besuntado de óleo. Até porque a praia ficava a mais de 600 quilômetros de distância. Mas havia os banhos de rio e de lagoas, as caçadas, as pescarias.
E havia as noites de lua cheia, de calor e de luciérnagas (a Argentina ficava logo ali), quando contávamos, uns aos outros, eu e meus tios, histórias de assombração.
Aquilo, sim, é que era infância, melhor que filme de Harry Potter!
Aquelas noites, povoadas de mulas sem-cabeça, boitatás, lobisomens e outros seres imaginários que nem Jorge Luis Borges foi capaz de imaginar, são o centro disso que, adulto, chamo de infância.
E essa infância, que construo do presente para o passado, que afeito, que mistifico, que atenuo ou exagero, transforma-me em escritor.
Pois, como disse Marcos Accioly:
"As pessoas ou são crianças ou são adultos. Ser menino é outra coisa. Menino não é criança nem adulto e, sendo todas as idades, é sem idade. Por fora se conhece a criança ou o adulto. Menino é dentro."
Parodiando o poeta pernambucano, posso dizer que "infância é dentro".
E o que é dentro a gente inventa, amplia, modifica, reconstrói, e apaga.
O que houve de ruim na minha infância eu converto em adubo de minha ficção. O que houve de bom, eu reconto para a Sofia, que teve a sua infância inventada pelos chineses, como diz a Marta.