Por João Gilberto Noll, escritor
Foi durante um dezembro dourado em Canela que um menino andou a cavalo pela primeira vez e descobriu-se cantando sozinho em meio ao silêncio de um bosque.
Nenhum leitor acertou que a criança da página 35 da Zero Hora de quarta-feira era João Gilberto Noll.
Era um menino em Canela que eu nem sei contar. Talvez, se soubesse a hora do dia, a claridade exata do céu e as sequências dos gestos ali à beira da estrada, olhando a casa de madeira de ripas coloridas onde eu ficava com minha família naquele dezembro dourado, talvez se soubesse tudo isso eu não teria como tenho em mim o clima intacto desse meu sentimento de outrora.
Havia um sapo morto a meus pés. Indaguei o que fazer com ele, apertá-lo com um pedaço de galho para ver o que saltaria do seu corpo pela boca? Não, não quis ver. Cavei então um buraco mínimo e ali depositei o pequeno corpo e joguei bastante terra por cima e por cima de tudo botei flores, um trevo no meio, as demais flores se irradiando dele.
Estava na hora de ir chamar o meu amigo três meses mais velho, também chamado João logo ali, numa casa próxima. Entre a minha casa e a dele havia um bosque imenso. O seu pai o colocava sempre a estudar mesmo nas férias, de modo que quando eu ia chamá-lo para as brincadeiras tinha de esperá-lo um pouco no bosque, o cheiro de terra úmida que antecede as chuvas, cheiro que devia vir das redondezas onde o temporal na certa já caíra.
Costumeiramente, quando João chegava eu já tinha me impregnado tanto do silêncio que me restava cantar. Ele escutava, não parecia embaraçado. Aliás, foi nesse veraneio que eu desandei a cantar. Depois dele, regido por minha mãe, dei para cantar em festas do colégio, em casamentos, batizados.
Um dia, montado pela primeira vez num cavalo, na frente da casa de ripas coloridas, apareceu rente à pata dianteira do animal uma cobra pronta para o bote. Todos em volta mordiam-se de nervosos. Por sorte um carro passava e parou. E saiu de dentro dele um homem pegando de uma pedra e a jogando em cima do bicho que... cessou... Tinha uma gruta por perto.
O barulho de uma fonte atrás da santa. O que mais me encantava eram as placas de gratidão por graças recebidas. Uma criança paralítica que voltara a andar, uma enferma grave que se recuperara, a tudo se agradecia, a tudo, e com a data do milagre.
Com a fonte eternamente a correr se ficava inebriado, ainda mais que naquele recanto a natureza era tão sobeja que o sol não entrava e uma aragem fresquinha fluía entre as sombras das folhas.
Ali comecei a sentir que, no início da noite, quando tudo serenava mais do que o previsto e eu estava subitamente só em algum dos quartos, me vinha uma sensação mental muito veloz, que transportava não-sei-quê além de sua própria correnteza, coisa que me fazia segurar na guarda de uma cama e pensar se eu gostava ou não dessa voragem.
Eu ia então para junto da lareira e, disfarçadamente, assobiava bem baixinho, assim, para ninguém notar...
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