Moacyr Scliar já escrevia que, para os judeus perseguidos em seus países de origem no leste europeu há mais de um século, locais como o Brasil representavam esperança e liberdade. Nas palavras do escritor, liberdade para trabalhar, estudar, prosperar. Enfim, para buscar uma vida melhor. Foi assim que se iniciou essa história no Rio Grande do Sul, em uma trajetória que completa 120 anos em 2024.
A primeira leva organizada de imigrantes da comunidade judaica se instalou em 1904, no que então se tornaria a Colônia Philippson, atual área de Itaara, ao norte de Santa Maria. Chegaram 38 famílias, em um convênio firmado entre o governo do Estado e a Jewish Colonization Association (JCA, sigla também conhecida como ICA). A ação foi comandada por Barão Maurice de Hirsch e sua esposa, Clara.
Anos depois, entre 1911 e 1913, mais de 200 famílias chegaram em outro ponto no território gaúcho: a Colônia Quatro Irmãos, na atual cidade de mesmo nome, norte do RS. De acordo com o presidente do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, Nilton Wainer, a iniciativa da ICA comprou áreas em diversos locais do mundo.
— Além do Rio Grande do Sul, também na Argentina, Canadá, Austrália e Estados Unidos. O objetivo era tirar essas pessoas de locais onde eram perseguidas. A maior parte dos judeus que colonizaram Philippson e Quatro Irmãos vieram da Bessarábia, atual Moldávia, que fica entre a Romênia e a Ucrânia — detalha.
Chegando aqui, receberam lotes de terra, casas de madeira, instrumentos agrícolas e animais, como um cavalo, um boi e uma vaca. Wainer explica que se firmava um contrato de empréstimo de longa duração, para que a comunidade pudesse se desenvolver. Após as duas colônias, os imigrantes passam a chegar de maneira mais esparsa, em grupos familiares.
Porém, o professor da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) que participou do livro 100 anos de amor: a imigração judaica no RS, Jacques Wainberg, explica que o caminho percorrido até as terras com que sonhavam não era tão simples.
— Essas viagens foram realizadas por navios de imigrantes financiados pela ICA. Como se sabe da história, eram viagens longas, difíceis, com más condições. Eram recebidos por imigrantes que já estavam no Brasil, geralmente no porto do Rio de Janeiro. Ficavam isolados numa ilha para evitar problemas sanitários. Isso acontecia com todos os imigrantes que chegavam ao Brasil — detalha, acrescentando que somente depois disso partiam para seus destinos finais.
Centros urbanos, como Porto Alegre, também foram destino dos imigrantes
Mas os desafios não acabaram aí. Mesmo chegando às novas cidades, encontravam na vida rural obstáculos diferentes. O perfil dos imigrantes era majoritariamente urbano, ou seja, nunca haviam trabalhado na terra. O vice-presidente do Conselho Rabínico Reformista do Brasil, rabino Guershon Kwasniewski, relata que alguns tiveram sucesso nas experiências agrícolas, mas a maioria acabou migrando para centros urbanos a partir da década de 1920.
— Muitos daqueles filhos de imigrantes que chegaram nas colônias foram progredindo, e tinham necessidade de estudo. As famílias acabaram os enviando para a Capital, em busca da carreira universitária. Assim, tornaram-se profissionais liberais. Por isso que temos muitos judeus engenheiros, médicos, arquitetos, professores, advogados e políticos — exemplifica.
Em Porto Alegre, estabeleceram-se inicialmente na área do bairro Bom Fim, onde construíram sinagogas, escola e outros espaços de convivência comunitária. Com o passar do tempo, a comunidade se espalhou pela cidade, mas a relação afetiva com a área permanece.
Segundo a vice-presidente de Advocacy da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS), Daniela Russowsky Raad, atualmente não há um censo atualizado do total de judeus no Estado. O Instituto Marc Chagall estima que esse número fique entre 10 e 15 mil pessoas.
— A maior parte está concentrada em Porto Alegre, mas ainda temos algumas comunidades próximas das antigas colônias. São grupos menores, em municípios como Erechim, Pelotas, Passo Fundo e Santa Maria. Aqui, fugindo de locais de perseguição, encontraram um lar e com muito orgulho se integraram à cultura — evidencia.
Marc Chagall guarda e conta a maior parte dessa história
Um dos principais locais que ainda conta parte dessa história é o Instituto Marc Chagall. Localizado na Rua General João Telles, 329, bairro Bom Fim, o espaço guarda a maior parte do acervo da imigração, com cerca de 45 mil itens. São documentos, fotos, áudios, objetos e gravações de eventos.
— A gente acompanha todo o desenvolvimento da comunidade. Nossa peça mais rara é um livro de 1601, escrito em alemão gótico, que aborda a guerra entre judeus e romanos. Além disso, temos 600 horas de depoimentos gravados em áudio de imigrantes já falecidos — sublinha o presidente Wainer.
Fundado em 1985, o Instituto está prestes a completar 40 anos. A área de exposição é aberta à visitação de segunda a sexta-feira, das 9h às 13h. É necessário realizar agendamento pelo telefone (51) 3019-4600 ou WhatsApp (51) 99397-5871. Mais informações estão disponíveis no site www.chagall.org.br.
Novas gerações são memória viva da comunidade
Descendentes de imigrantes judeus aproveitaram uma exposição sobre a Bessarábia na última semana para conferir o acervo do Marc Chagall. Entre eles, o engenheiro Paulo Smith Schneider, 67 anos, morador de Porto Alegre.
— A minha família de origem judaica é a do lado paterno. Meu bisavô chegou na primeira leva de imigrantes, já trazendo o meu avô, para a Colônia Philippson. O que temos até hoje de reflexos do povo é a forma de pensar, a forma de encarar o mundo. Acho que é algo comum a todos que passaram por mudanças forçadas. Cria uma percepção mais relativizada na gente. Uma mistura de tolerância com coragem — avalia.
[...] O que temos até hoje de reflexos do povo é a forma de pensar, a forma de encarar o mundo. Acho que é algo comum a todos que passaram por mudanças forçadas. Cria uma percepção mais relativizada na gente. Uma mistura de tolerância com coragem
PAULO SMITH SCHNEIDER
Engenheiro
Da mesma forma, a professora aposentada Lúbia Scliar Zilberknop, 86, e o filho, o comerciante Celso Zilberknop, 63, conferiram o material disponível no Instituto recentemente.
— Minha família é de origem judaica. A minha mãe veio da Bessarábia quando tinha três anos. Ela foi para a Colônia Quatro Irmãos, chegando em 1912. Mas eles quase não ficaram lá naquela região. A vida com a plantação era muito difícil e acabaram vindo para Porto Alegre — resume.