Mesmo 120 anos depois de a história da imigração judaica começar a ser escrita no Rio Grande do Sul, o legado ainda permanece aceso de diferentes formas. Quem circula hoje pelo bairro Bom Fim, em Porto Alegre, por exemplo, pode se deparar com um espaço que preserva parte importante da cultura judaica. É no Restaurante MidBar (deserto, em hebraico), com um mix de culinária do Oriente Médio, que pratos típicos seguem sendo comercializados.
Mas a denominação é apenas um dos elementos dessa tradição. Na decoração, também não faltam indicativos da origem da família, com quadros de Tel Aviv, Jerusalém e uma mezuzá instalada à porta (pergaminho que faz parte dos costumes passados de geração em geração). Na gastronomia, opções de origem libanesa e marroquina, assim como o tradicional almoço caseiro, dividem espaço com a comida judaica.
A proprietária do MidBar, Sara Rebeca Engelman Astarita, 68 anos, é filha de dois imigrantes que vieram da Polônia. A mãe, aos quatro anos, foi para a região de Erechim, em 1926. Quatro anos depois, o pai saiu do mesmo país com seis anos e se mudou para Porto Alegre. A trajetória do restaurante iniciou com um primo israelense, mas agora faz 13 anos que Sara e o marido José Antônio Fernandes Astarita, 68, coordenam o comércio.
— O meu marido sempre gostou muito de cozinhar. Então, dentro dos pratos que o meu primo trouxe, fomos aprendendo as receitas e moldando o sabor para o gosto mais abrasileirado, mas sem descaracterizar. Aos sábados e domingos, além das noites durante a semana, temos o bufê do Oriente Médio. No almoço, durante a semana, servimos comida caseira — detalha.
Entre os pratos mais específicos da cultura judaica, ela conta que estão o falafel (bolinho de grão-de-bico), varenikes (recheado com purê de batata e cebola caramelada, com formato semelhante ao capeletti), húmus (pasta de grão-de-bico) e a salada de ovo (ovo picado com molho de cenoura), que, por ser muito conhecida pela clientela, também foi parar nos pedidos de delivery.
— É até engraçado, mas a maior parte dos nossos clientes não é de origem judaica. Além do bufê tradicional, em datas comemorativas, como o Rosh Hashanah, que é o Ano-Novo judaico, também fazemos pratos especiais. Para o judeu, é muito forte a questão da simbologia. E isso está presente até na comida — acrescenta Sara.
Outro espaço tradicional da culinária judaica europeia em Porto Alegre é a Sabra Delicatessen, também localizada no Bom Fim. Especializado em comidas típicas, o local é lembrado por ser considerado clássico entre a comunidade.
Sinagogas, escolas e cemitérios: os primeiros espaços estabelecidos
De acordo com o vice-presidente do Conselho Rabínico Reformista do Brasil, rabino Guershon Kwasniewski, os primeiros espaços que o judeu estabelece nos períodos de imigração são as sinagogas, escolas e cemitérios. Os grupos que chegavam de diferentes regiões mantinham costumes e tradições, começando pelo idioma.
— Cada sinagoga, por exemplo, era uma microrreprodução do ambiente do qual eles saíram. Em Porto Alegre, temos a sinagoga fundada pelos húngaros, alemães, poloneses, russos, da península ibérica. Cada um que migrou tentou conservar desde as línguas vernáculas misturadas com hebraico, até a culinária — relata, explicando que atualmente, na Capital, são quatro sinagogas no bairro Bom Fim, uma no Centro e uma no bairro Rio Branco, além de uma inativa.
São as sinagogas que também representam momentos de grande celebração na cultura judaica. O presidente do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, Nilton Wainer, conta que muitas pessoas ainda respeitam o Shabat, a tradição de acender as velas, rezar nos templos nas sextas-feiras à tardinha e descansar durante o sábado.
— E também temos duas grandes festas, que são o Pessach, conhecida como a Páscoa judaica, mas que na verdade relembra a libertação da escravidão de judeus do Egito, e o Yom Kipur, que é o dia do perdão, da purificação. Fora isso, há outras datas, como a festa da colheita e das luzes — destaca.
Para o “povo do livro”, educação é essencial
Conhecido como o “povo do livro”, os judeus fazem jus ao título. Conforme o professor da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) que participou do livro 100 anos de amor: a imigração judaica no RS, Jacques Wainberg, há um compromisso muito grande com a educação.
— Houve um contrato não explícito entre pais e filhos. Os pais prometeram aos filhos que, se precisassem, trabalhariam três turnos. Em contrapartida, os filhos teriam que estudar. Esse é o principal legado que a nova geração traz na memória. Por isso que hoje a juventude judaica é acadêmica, envolvida com temas da ciência e pesquisa — sublinha.
[...] os filhos teriam que estudar. Esse é o principal legado que a nova geração traz na memória. Por isso que hoje a juventude judaica é acadêmica, envolvida com temas da ciência e pesquisa
JACQUES WAINBERG
Professor da PUCRS
Exemplo disso é o Colégio Israelita Brasileiro, uma instituição secular, instalada no bairro Santa Cecília. É considerado uma das principais entidades da comunidade judaica no Estado. Até hoje, busca trabalhar pela manutenção da cultura judaica lado a lado com o estímulo da pluralidade e da coexistência.
Nas aulas, as turmas estudam as fontes do judaísmo, bem como o conhecimento secular de ponta. Também realizam a celebração do Shabat com alunos e profissionais todas as sextas-feiras, aulas curriculares de Dança Israeli (dança folclórica israelense) do 1º ao 6º ano e grupos para as famílias. Ensino da língua hebraica, celebração do calendário judaico, almoço kasher e o avirá, que é uma ambientação judaica, também fazem parte das atividades.
Entre os dias 19 e 23 de agosto, o Colégio promoverá a 10ª Semana Cultural Judaica, que celebra a herança e as tradições da comunidade judaica, com o tema “120 anos de Imigração Judaica para o Rio Grande do Sul”. O evento contará com convidados, rodas de conversa, workshops, dança, música e exposições. A programação completa está disponível em https://bit.ly/semana-cultural-judaica-2024
Tradição que deve ser preservada
Quem representa o trabalho das entidades no Estado atualmente é a Federação Israelita do RS (Firs). Trabalhando com pilares institucional e comunitário, a Firs representa tanto interna, quanto externamente, seus grupos.
— A comunidade judaica tem uma vida comunitária ativa. Muitos dos eventos são comunitários. Alguns abertos e outros não. Um exemplo é o festival de dança israelita. Além de encontros musicais, diálogos, palestras — cita a vice-presidente de Advocacy da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS), Daniela Russowsky Raad.
Com tantos exemplos de tradição judaica, Daniela chama a atenção para a importância da manutenção dessa cultura. Ela salienta que Israel faz parte da identidade do povo judeu, e hoje há o ponto latente dos conflitos e polarização.
— Vemos uma crescente no antissemitismo e um dos nossos papéis é conscientizar, fazer com que a informação chegue. Existe um caminho pela paz, pela educação. A nossa comunidade está aqui há tantos anos, tem uma identificação muito forte. Então, é por isso que prezamos.