Em 2017, Lisiane Lemos figurou na lista Under 30 da revista Forbes com os mais jovens e brilhantes empreendedores, em decorrência de suas atividades relacionadas à luta pela equidade no universo corporativo. Por muitos anos, atuou em grandes empresas de tecnologia, incluindo Microsoft e Google. Hoje, aos 35 anos, ela é a secretária extraordinária de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade do governo do Rio Grande do Sul. E foi uma das convidadas no 8° Colóquio Internacional de Bioética, Neuroética e Ética em Inteligência Artificial, realizado recentemente na PUCRS. Atualmente, a gaúcha de Pelotas é professora convidada do MBA em Big Data e Analytics na mesma instituição e dá palestras sobre o mercado de tecnologia. Lisiane tem como principais bandeiras o combate ao racismo e ao sexismo, engajada em questões como a inclusão de mulheres e pessoas negras no mercado de trabalho e a falta de espaço para essas pessoas em cargos de liderança.
Você costuma dizer que a tecnologia é uma aliada para acelerar mudanças positivas na sociedade. Como o digital pode contribuir para solucionar problemas de desigualdade?
As novas gerações, ou seja, pessoas até os 30 e poucos anos de idade, que conviveram mais com a tecnologia em suas vidas, utilizam as redes sociais para fazer discussões profundas sobre as pautas, seja para deixar de forma explícita o que incomoda, ou para propor soluções. O papel das políticas de equidade é dar voz àqueles que nunca tiveram voz, e a tecnologia potencializa esse processo, traz escala. Nas redes sociais do governo, por exemplo, a gente consegue propagar informações relevantes sobre o Estado com amplo alcance, para os 497 municípios que temos, e ao mesmo tempo ter uma escuta ativa. As redes sociais funcionam como um termômetro para acompanhar as demandas da população e, por outro lado, dar transparência às nossas ações, mostrar às pessoas onde está sendo investido o dinheiro delas. Outro ponto importante é a colaboração. A tecnologia vem para alavancar esses processos, ela permite desenvolver projetos colaborativos e conectar pessoas que antes nem imaginavam trabalhar juntas. Por exemplo, nós lançamos um comitê intersetorial chamado Avança Mulher Empreendedora. É um projeto para alavancar o empreendedorismo feminino em vizinhanças com alto índice de criminalidade e letalidade, direcionadas pelo RS Seguro, e em comunidades atingidas por desastres climáticos. Tem 30 entidades envolvidas no projeto. Se não fosse pela tecnologia, essas pessoas não teriam como se conectar.
Por outro lado, sabemos que a tecnologia também já criou problemas que antes não tínhamos. Quais são os riscos desses avanços tecnológicos, quando se trata de equidade?
Precisamos sempre ter atenção à questão da equidade. Se a gente não se apropriar da tecnologia, ela será educada por outras pessoas, com seus interesses. É por isso que eu falo que os chamados “vieses inconscientes” são conscientes, na verdade, muitas vezes. Um exemplo prático disso aconteceu comigo quando eu morava em São Paulo. Eu tinha pavor de dias de chuva, porque o portão do meu prédio tinha sistema de biometria, e nesses dias o sensor tinha dificuldade de me reconhecer. Porque o robô não é treinado para reconhecer pessoas pretas, o reconhecimento facial tem esses problemas. Precisamos pensar quem está construindo essas tecnologias, quem está do outro lado. Por isso, é preciso falar em políticas de empregabilidade e de qualificação inclusivas. Se não, teremos sempre as mesmas pessoas, com o mesmo perfil. Políticas de equidade alavancadas pela tecnologia só vão funcionar se a gente conseguir colocar pessoas plurais para construir essas soluções, e mobilizar as empresas para isso. É esse o tipo de mudança que estamos promovendo no setor público.
Recentemente, você participou de um evento que aborda questões de ética e inteligência artificial (IA). Sobre isso, você acredita que o desenvolvimento da IA é acompanhado por esse olhar para a equidade? As pessoas que estão desenvolvendo essas tecnologias estão preocupadas com isso?
Não. Acho que o avanço da tecnologia não está sendo acompanhado por políticas de equidade, mas é isto o que me faz levantar da cama todo dia: fazer com que nós tenhamos atenção a essa construção. Eu comecei a trabalhar com essa pauta, de trazer populações minorizadas, como a das mulheres negras, para os conselhos de administração, porque é justamente nessas cadeiras que as grandes decisões são tomadas. Se a gente não tem representatividade de vozes nessa mesa, as decisões não serão tomadas pensando em todos. É por isso que eu falo desses vieses conscientes. Eu permeio várias minorias, como mulher jovem e negra, e sei que é doloroso estar nesses espaços. A inteligência artificial pode ser interpretada como um retrato do que é a nossa sociedade, porque somos nós que educamos os robôs. Tomando como exemplo o mercado de tecnologia, em que atuei por muitos anos, temos menos de 5% dos cargos de liderança ocupados por pessoas pretas. Se você pedir para uma plataforma de IA gerar uma imagem de uma líder mulher, existe uma probabilidade muito pequena de aparecer uma mulher preta. Sou extremamente otimista, mas temos que ter esses pontos de atenção. Nosso interesse é diretamente proporcional ao investimento nas coisas. Por exemplo, vejo muitas empresas manifestando interesse em usar a IA para acelerar políticas de equidade, mas, quando pergunto sobre o orçamento para isso, não existe. Um dos meus papéis como secretária é desenvolver projetos com grandes empresas de tecnologia que estejam realmente interessadas nisso, criar essas conexões.
E quais são os riscos para o futuro, caso a gente continue desenvolvendo aceleradamente a inteligência artificial sem ter essa consciência?
Não vai ter lugar para a gente, para as minorias. Essas pessoas não vão ter acesso às tecnologias e não vão conseguir crescer, haverá uma segmentação cada vez maior da sociedade. Combater isso é o que me motiva, poder construir um lugar onde todo mundo possa exercer seu potencial em sua plenitude. Pessoas que vivem em locais de alta vulnerabilidade, pessoas com deficiência, a população LGBTQIA+, pessoas negras. Não vão existir novas tecnologias se as pessoas às quais elas servem não estiverem na mesa, podendo dialogar de forma aberta. Quando eu falo de inclusão, é para que todos tenham voz. Mais do que diversidade, precisamos ter protagonismo. E a equidade existe para desenvolver soluções na medida das desigualdades das pessoas. A IA, por exemplo, é sempre construída em cima de uma base de dados. Se essa base não é plural, e aqueles que a constroem também não são, ela vai sempre reproduzir o mesmo estereótipo. Quando alguém como eu integra os times responsáveis por essa construção, se eu consigo ajudar a construir a base de dados, pode ser que na próxima vez que eu pesquisar “secretária de Estado do Rio Grande do Sul” apareçam figuras plurais, e as pessoas consigam se enxergar.
A equidade existe para desenvolver soluções na medida das desigualdades das pessoas. A inteligência artificial, por exemplo, é sempre construída em cima de uma base de dados. Se essa base não é plural, e aqueles que a constroem também não são, ela vai sempre reproduzir o mesmo estereótipo.
Você fala muito sobre a questão da maturidade digital. Já chegamos a uma etapa mais madura de inclusão digital? Como está andando esse processo no Estado?
Eu acho que não só no Rio Grande do Sul, mas na sociedade como um todo nunca vamos atingir uma maturidade digital ou uma inclusão plena de todas as pessoas. Porque até para nós, que somos nativos digitais, sempre que você avança um passo, a tecnologia avança mais dois ou três. Hoje nós somos um dos Estados mais inovadores, nós ofertamos um nível de serviço acima da média nacional. Mas como provocar as pessoas para que usem os seus devices em vez de ir ao Tudo Fácil? Muito do nosso trabalho de educação é mostrar que a tecnologia não vem para tomar o lugar das pessoas, mas para alavancar processos, para desenhar essa jornada de inclusão junto com as pessoas onde elas estão, na linguagem que elas entendem, de uma forma moderna e sustentável a longo prazo. Então, ainda temos muito a caminhar, e isso passa muito pela escuta das pessoas.
Quais foram os resultados do seu trabalho no governo, até o momento, após esse primeiro ano de atuação da secretaria?
Eu digo que as ações acontecem a curto prazo, mas os resultados, a longo prazo. O primeiro ponto foi diagnosticar, identificar em que momento estamos em termos de inclusão digital. O Rio Grande do Sul é um Estado avançado na oferta de serviços digitais. Agora, o nosso desafio é na adesão aos serviços, na popularização deles, e garantir conexão e acesso a todas as pessoas. Sob uma ótica de inclusão, o que temos feito, principalmente, é a divulgação dessas ações, colocar pessoas dentro do Tudo Fácil para auxiliar a nossa população a utilizar esses serviços, tendo em vista que boa parte dela é mais longeva, não são nativos digitais.
Na prática, o que mudou? Quais foram as principais conquistas?
Um dos principais marcos, no primeiro ano, foram as conexões com empresas de tecnologia, que vieram como resultado da missão em Nova York. Tivemos imersões na Procergs com empresas como Microsoft, Google e SAP, que vieram falar de grandes tendências para o setor público, abordando não só inclusão digital, mas também abrindo portas para uma modernização mais ampla, com uso de inteligência artificial. Outra grande entrega foi promover cursos de programação no Ceconp (Centro de Convivência e Profissionalização) da Fase (Fundação de Atendimento Socioeducativo). Vamos formar uma turma piloto nesse curso de três meses, qualificando pessoas que não tinham nenhum aprendizado relacionado à tecnologia. Outro marco são as ações sociais do South Summit. Temos o compromisso contratual de entregar 500 ingressos sociais, endereçados a estudantes de escolas públicas e pessoas em situação de vulnerabilidade. Só neste ano, tivemos aproveitamento de quase 99% dos ingressos. Ou seja, essas pessoas realmente foram ao cais e foram parte disso. Empreendedores das nossas periferias criaram conexões com empresas importantes, por exemplo. Também fechamos o Auditório Araújo Vianna no ano passado para realizar um evento voltado a estudantes de escola pública, levando palestrantes inovadores internacionais para falar e motivar esses jovens, pensando em carreira. Então, temos muitos projetos acontecendo, e muitos outros virão.
Muito do nosso trabalho de educação é mostrar que a tecnologia não vem para tomar o lugar das pessoas, mas para alavancar processos, para desenhar essa jornada de inclusão junto com as pessoas onde elas estão, na linguagem que elas entendem, de uma forma moderna e sustentável a longo prazo.
Você diz que a tecnologia e a inovação não são a mesma coisa, que é importante diferenciar. Em quais aspectos está a inovação, neste trabalho da secretaria?
Inovar é fazer de um jeito diferente as coisas que a gente tem que fazer. Por isso eu digo: a inovação está em todo lugar. Sempre falo para o governador que precisamos humanizar as pessoas que estão nesses cargos de alta liderança, precisamos nos conectar com as pessoas. Temos que inovar no jeito que a gente se coloca no mundo, no jeito de tratar os cidadãos. Isso pode se traduzir na oferta dos serviços. Um exemplo disso é esse curso de programação. Já temos isso nas escolas públicas. Por isso, decidimos levar agora para os nossos jovens infratores, para mulheres em situação de violência. Para que eles também possam montar seus próprios negócios. Outra questão é a forma de trabalhar, nós trabalhamos por projetos na secretaria. Para mim isso parece algo muito simples, mas foi um choque cultural muito grande quando cheguei aqui. As pessoas não entendiam o que eu fazia. Quando fui contratar uma pessoa, tive que fazer uma live para explicar esse trabalho, porque as pessoas não entendiam direito. Então, a tecnologia é um mecanismo para executar as coisas, mas a inovação está em qualquer lugar. Mesmo nas coisas mais tradicionais. Minha esperança é de que a gente inove a ponto de as pessoas enxergarem o setor público de um jeito diferente.
Como são organizados esses projetos conduzidos pela secretaria?
Primeiro, o que a gente traz de diferente é sermos uma secretaria transversal. Tenho a honra de trabalhar com todos os 27 secretários. Em segundo lugar, é uma gestão feita por projetos. Nós não atuamos de uma forma ampla, mas pontual. Desenhou o projeto, acompanhou, entregou, fez a recorrência. É esse o processo. E temos uma equipe multidisciplinar e multietária. A equipe começa em 30 anos e vai até os 66, além de ter paridade racial e ser majoritariamente feminina. A secretaria transmite tudo que a gente acredita enquanto o valor, e pessoalmente eu tenho um nível muito grande de autonomia nas minhas loucuras, que o governador me dá (risos). Vamos ter oito pessoas na equipe agora, começamos com cinco. A ideia é ter 10 pessoas, pelo menos. Isso tudo é inovação, essa gestão transversal, por projetos. Hoje, quando falo dos pilares, não é sobre criar algo novo. É sobre alavancar coisas que já estavam sendo criadas, e potencializar, sempre que for possível. Temos uma série de ações divididas nos quatro eixos que guiam o nosso trabalho. O primeiro é de educação digital. Muito do nosso trabalho educacional é para mostrar que a tecnologia não vem para tomar o lugar das pessoas, mas para alavancar esses processos, para desenhar essa jornada de inclusão junto com as pessoas onde elas estão, na linguagem que elas entendem, de uma forma moderna e que seja sustentável a longo prazo. Tem o eixo de cidadania, voltado a ações para as populações vulnerabilizadas, o de empreendedorismo, que é muito importante para a transformação digital do pequeno empreendedor, e o agronegócio, que é o que movimenta é o nosso PIB.
E pessoalmente, como tem sido essa experiência na gestão pública?
Eu nunca me imaginei no setor público. Acho que já falei isso algumas vezes, né? Mesmo sendo filha de servidores, e eu me lembro de trazer os meus pais aqui no palácio na posse do governador, e o quão significativo foi ver que eu, vindo uma família de professoras, e o meu pai bombeiro, a gente conseguir em poucas gerações inverter isso e ter uma herdeira secretária de Estado. Nos primeiros meses aqui, usei para entender o que eu estava fazendo aqui, porque é um cenário totalmente diferente de antes, seja em geolocalização, porque eu estava respondendo pela América Latina dentro da Google; seja na cultura, de entender o que as pessoas esperavam de mim, e acho que isso é muito importante. Ou seja, eu entender qual roupagem fazia sentido. E tinha uma barreira muito grande de medo das pessoas, por eu vir de grandes empresas de tecnologia. “Como é que vai ser esse choque? Será que ela vai aguentar? Quanto tempo ela vai ficar?” Tinha esse burburinho, muitas pessoas achavam que eu não ia aguentar o primeiro ano. Acho que às vezes eu também achei que não ia aguentar. Mas tem sido uma aventura muito gratificante.