Em um país onde a educação não recebe o valor que merece, o sonho número 1 desta guerreira é formar-se em Pedagogia. A falta de um local adequado para deixar os filhos no bairro Umbu, em Alvorada, foi o que motivou Miriam Fernandes Pedroso, 55 anos, a abrir uma escolinha improvisada na sala de casa.
Uma pequena reportagem em 2003, feita pela mesma repórter que escreve estas linhas, impulsionou Miriam a nunca desistir. Vinte anos depois, ela segue firme na crença de que, não importa o sucesso que qualquer um tenha na profissão, tudo começa com um professor.
Foi Miriam que entrou em contato com a reportagem do Diário Gaúcho, pois queria atualizar sua história, mostrar o quanto evoluiu em duas décadas.
– Eu tenho tanta coisa para te contar desses 20 anos... Relendo a reportagem, eu tinha 35 anos, hoje tenho 55 anos. Na época, tinha só o Ensino Fundamental e um cursinho de recreacionista.
Ela relata que, após sair nas páginas do DG, a procura pela escolinha aumentou muito. Foi necessário sair de casa e alugar um prédio maior. Miriam chegou a ter 80 crianças matriculadas.
– Eu tinha CNPJ, assinava carteira. Tive creche por 14 anos. Era diferenciada, pois abria às seis da manhã e fechava às oito da noite, atendendo as famílias que saíam muito cedo e também aquelas que trabalhavam até mais tarde. Eu tinha berçário, maternal, jardim, e também o extraclasse, crianças de 12 anos, que a gente levava na escola, buscava e ajudava nas tarefas – relembra.
A escolinha acabou fechando por dois motivos: o reajuste do aluguel do prédio, que segundo ela foi muito alto, e uma proposta de trabalho na prefeitura de Alvorada. À época, Miriam já havia concluído o Ensino Médio e feito Magistério.
Um novo obstáculo em 2017
Miriam estagiava em escolas de Alvorada quando, em 2017, descobriu que estava com câncer de mama:
– Quando eu recebi o diagnóstico, eu tava no Hospital de Alvorada sozinha, e a médica me disse: “É maligno”. A gente pensa que vai morrer, né? Morrer amanhã mesmo. Mas, graças a Deus, eu tive o apoio da minha família. Foi uma época punk.
Ela passou por um ano e meio de tratamento no Hospital de Clínicas. Fez 15 sessões de quimioterapia e 30 de radioterapia. Retirou parte da mama esquerda e, até hoje, vai duas vezes ao ano no hospital para acompanhamento.
Nessa época, ela havia começado a cursar a faculdade de Pedagogia, na modalidade a distância.
– Como era paga, e eu tive que largar. Ao menos consegui o auxílio-doença, pois pagava INSS na época em que tinha a creche. Fiquei um ano e meio encostada (recebendo o benefício).
Em 2019, já melhor de saúde, Miriam inscreveu-se para o curso técnico em Tradução e Interpretação de Libras do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) Campus Alvorada. No segundo semestre, a surpresa: começou a ser oferecido no local o curso de Pedagogia.
– Consegui a vaga, mas, aí, veio a pandemia. Faz 10 anos que eu tento me formar em Pedagogia, ou é problema de saúde, ou é problema financeiro... Eu me formaria em setembro do ano que vem, mas agora ficou para 2025. Era uma turma de 40 alunos, hoje só são 18, muitos desistiram devido à pandemia ou à dificuldade em ter aulas remotas.
Formatura no início de tudo
Nascida em Rio Grande, no Litoral Sul, Miriam veio morar em Porto Alegre aos 17 anos. E curiosamente, na origem está uma formatura:
– Uma prima minha que morava em Porto Alegre se formou no Ensino Médio, e era um evento. Na família, ninguém tinha se formado. Eu havia parado de estudar na 5ª série, com 11 anos. Vim para a formatura dela, era em dezembro. Daí, passei Natal, Ano-Novo em Porto Alegre, e um tio meu acabou me conseguindo emprego como balconista em uma padaria.
Anos depois, ela conheceu o marido, o conferente César, com quem está há 32 anos. Eles são pais de William, 30 anos, Wallace, 28, e Wellison, 18. O caçula possui deficiência intelectual e transtorno do espectro autista.
Já a ida para Alvorada foi, como ela admite, “meio no susto”, para fugir do aluguel.
– Em 2000, compramos uma casa por R$ 1.500. Usei o dinheiro de uma demissão e nos mudamos imediatamente. Antes eu nem sabia que existia a Umbu, em Alvorada.
Com a mudança feita, ela começou a procurar creche para o filho de cinco anos e “se apavorou com a estrutura que encontrou”:
– Era muito “cuida-se” (apelido dado a pessoas que improvisam creches em casa), mas tipo uns depósitos de crianças. As pessoas não tinham curso. Pensei que não era isso que eu queria para o meu filho. Como eu tinha um curso do Senac de recreacionista, que hoje nem vale mais, botei anúncio na minha casa. Em um mês, eu já tinha 20 crianças. Foi quando troquei minha casa por outra, na avenida. Moro na Umbu até hoje, faz três anos que a gente financiou um terreno, para fazer uma casa para cada filho, nos fundos, e eles não passarem pelo que passei.
No IFRS, o início de um novo projeto
Miriam considera o Instituto Federal a sua “segunda casa”. É lá que tem colocado em prática um outro projeto: a alfabetização de adultos. E a ideia surgiu ainda na época em que trabalhava com os pequeninos.
– Eu notei o seguinte, durante a creche: quando eu mandava na sexta-feira tema para as crianças, muitos não voltavam feitos. Isso porque várias crianças eram cuidadas pelos avós, e muitos deles eram analfabetos. Como eles iam ajudar as crianças com as tarefas, se mal sabiam escrever o nome?
Assim, ainda em 2022, Miriam começou a integrar um projeto de alfabetização de adultos.
– Era para pessoas acima de 40 anos. Só que apareceu gente de 19, 24, 25 anos. As aulas são aos sábados. Tentaram fazer à noite, mas poucos apareciam. É longe, escuro, não tem transporte, além do frio e do medo da violência.
O projeto foi renovado neste ano, e a perspectiva é de que siga no próximo. A última aula do ano letivo deve ocorrer neste sábado (18). Depois, estão planejados um passeio ao zoológico e uma festa de encerramento. Atualmente, Miriam é bolsista na iniciativa.
– Minha maior emoção foi dar o meu relato na Mepex (Mostra de Ensino, Pesquisa e Extensão, que reúne trabalhos feitos nos IFRS de todo o Estado), em Bento Gonçalves. Eu tinha 10 minutos para apresentar o projeto, a sala estava cheia. Respirei fundo e fui. Quando terminei a última palavra, eu caí no choro. E começou todo mundo a gritar: “Viva a educação popular!”, “Viva o Instituto Federal”. O prêmio maior foi o reconhecimento.
Gratidão
O projeto de alfabetização tem, no momento, 30 alunos, a maioria mulheres. A mais jovem, com deficiência intelectual, tem 19 anos, e a mais velha tem mais de 80.
– É muito gratificante, as pessoas se conhecem e se ajudam. Um dia desses, uma aluna estava há uma semana sem luz em casa por falta de pagamento. Fizemos uma vaquinha entre o pessoal do Instituto e conseguimos pagar a conta, foi muito emocionante – relata Miriam.
Apesar dos momentos de gratidão, ela é ciente das dificuldades da profissão que escolheu.
– O professor, além de mal remunerado, não é valorizado. Trabalho pela manhã em uma escola infantil conveniada com a prefeitura de Alvorada, com uma turma de crianças de quatro anos. A maioria das famílias sequer entende o ofício do professor, porque também eles não tiveram a oportunidade de estudar – fala Miriam, que prossegue:
– Mesmo assim, queria dizer que não dá para desistir. A educação é tudo. É a base de tudo. Qualquer pessoa em profissão de destaque, teve um professor lá atrás.
Quatro sonhos
Quase no final da conversa, Miriam tem uma confidência a fazer. Ela cultiva quatro sonhos. O primeiro, logicamente, é terminar a faculdade de Pedagogia, um objetivo que persegue há cerca de 10 anos, pelo menos.
O segundo, é ser chamada em um dos três concursos públicos nos quais já passou (para trabalhar na rede de ensino das prefeituras de Gravataí, Alvorada e Balneário Pinhal).
O terceiro foge da perspectiva de trabalho:
– O único momento inteiramente meu que tenho, já que me dedico demais aos outros, é quando vou a shows de música sertaneja. Gostaria muito de conhecer a dupla Henrique & Juliano. Amo demais, as músicas deles me ajudaram muito a superar a fase difícil da minha vida, quando estava doente. Cada música tem um significado em uma etapa da minha vida.
O quarto sonho é de consumo, mas, como boa mãe, não é para si:
– Poder dar um PlayStation 5 para o meu filho mais novo. Ele não tem muita noção do valor das coisas, não entende que a gente não tem condições.
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