Ela é dona de uma memória prodigiosa e de uma energia que parece não ter fim. Define-se como “uma mulher muito esclarecida”. Apesar da vida de muitas dificuldades – começou a trabalhar aos 10 anos, como empregada doméstica, e convive desde o nascimento com uma deficiência visual – considera-se uma privilegiada:
– Na vida, eu só conheci pessoas boas.
Assim é a irrequieta Pierina Moretto Kohler, 58 anos, moradora do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre. Que, principalmente, é a mãe da Carolina, 26 anos, e que por sua filha faz qualquer coisa. Até mesmo cursar o Ensino Médio para acompanhá-la.
Origem na roça e muito trabalho
Natural de Erval Grande, no noroeste do Estado, Pierina perdeu a mãe aos nove anos. O pai trabalhava por empreitadas em granjas, e ficava períodos longe de casa. Não teria como cuidar dela e da outra filha mais nova, de oito anos.
– Meu pai disse: “Não posso ficar com vocês, eu sou um homem, não sei como cuidar”. Aí, ele me botou em casa de família. Com 10 anos, já fui trabalhar.
Alguns meses depois, a saudade bateu e ela pediu para ficar com as irmãs mais velhas, que haviam se estabelecido em Porto Alegre. Mesmo trabalhando com tão pouca idade – algo que, na época, encarou com a naturalidade de quem veio da roça – só guardou boas recordações:
– Conseguiram uma autorização do juiz para me trazer para Porto Alegre, já dentro da casa de outra família, com 11 anos. Foram as patroas que me ensinaram como cuidar de uma criança, como fazer o serviço. As patroas que tive foram minhas mães. Eu aprendi muito e sempre fui respeitada.
Após a morte da mãe, ela parou de frequentar a escola, mas foi incentivada por uma das patroas a retomar.
– Aos 15 anos, quando trabalhava e morava na Rua Riachuelo, eu entrei no Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização, iniciativa do governo federal para educação de adultos, entre 1970 e 1985). Também fiz umas aulas do supletivo pelo rádio. Não sei bem em que série eu parei, mas sabia ler, escrever, fazer contas, comprar uma roupa na loja – recorda.
Emprego no motel e casamento
Certa vez, uma das irmãs de Pierina conseguiu emprego como caixa em um motel e passou a “ganhar muito bem”.
– Aos 17 anos, eu bati na porta do motel pedindo emprego. A dona me disse que não poderia, pois era menor de idade. Quando completei 18 anos, apareci de novo e ela me deu o emprego. Fiquei sete anos lá, trabalhando como camareira. Era muito interessante, muito divertido.
Foi morando e trabalhando no centro da Capital que Pierina conheceu o marido, Wilibaldo Kohler, funcionário de posto de gasolina. Ele era filho da dona da casa alugada por ela, na Rua General João Manoel – a mesma onde ficava o tal motel.
– Depois da João Manoel, fomos morar na José do Patrocínio. Lá me casei, fomos a pé até o cartório. Casei de vestido branco, no civil só, porque não dava o dinheiro para a igreja. Nós mesmos fizemos o nosso casamento, eu e o meu marido. Fizemos um coquetel. Construímos a nossa vida, trabalhando, eu e ele.
Mais tarde, para fugir do aluguel, foram morar em uma casa pré-fabricada no bairro Bom Jesus, erguida em um pedaço de terreno cedido pela irmã de Pierina.
Um dia inesquecível
Pierina afirma que, durante a gestação, não perdeu um dia só de emprego:
– Trabalhei os nove meses. Eu conversava muito com a Carol, ela dentro do meu útero. Nós tínhamos uma combinação. Ela queria comer, começava a me dar chutes. Eu dizia: “O horário não dá, tu espera um pouquinho, que vamos ao restaurante comer um bife a cavalo”. Ela me obedecia, já era uma combinação incrível.
Ela conta que, quando entrou em trabalho de parto, foi até a Santa Casa sozinha e fez a baixa.
– De lá, eles ligaram para a minha patroa para avisar que eu estava no hospital. Eu mesma me internei, para não incomodar ninguém. Meu marido ficou sabendo depois. Carol nasceu às 10 pras 10, dia 4 de julho. Foi muito bonito. Ela nasceu muito brava, acordou toda a maternidade.
Descoberta difícil
A mãe lembra que Carol foi crescendo e se desenvolvendo normalmente, embora sempre muito acanhada. Apesar disso, brincava na rua e se divertia com outras crianças.
Aos sete anos, começou a apresentar dificuldades. Se jogava no chão, rasgava as folhas do caderno, escondia-se atrás dos pilares. A professora chamou Pierina para uma reunião. Disse que achava que a menina tinha alguma coisa, que era para levar no psicólogo.
– Prontamente, corremos pela Porto Alegre toda, conseguimos psicóloga, pedagoga, tudo de graça – conta.
No Hospital Presidente Vargas, Carol foi diagnosticada com deficiência intelectual. Permaneceu na mesma escola até os 11 anos, mas sem muitos progressos, até que sugeriram à família procurar uma escola especial. Assim, aos 12 anos, Carol foi matriculada na Escola Estadual Especial Cristo Redentor. Foi lá também que a dupla ficou sabendo do trabalho desenvolvido na Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade (Apabb).
– Indico a qualquer um, vá para lá. As pessoas te recebem bem, as mães têm comunicação umas com as outras, cada uma tem uma história... Formamos laços de amizade.
Unidas pelo estudo
– Eu fazia o EJA (Educação de Jovens e Adultos) na Antão de Faria (escola estadual no bairro Bom Jesus). A Carol começou a se interessar pelas minhas matérias. Ficava de olho nas minhas tarefas escolares e gostava de geografia. Um dia, a Carol me disse: “Eu queria aprender, mãe, mas no Cristo não tem”.
Eu sou muito rápida, meu raciocínio é rápido. Eu aprendi a ser assim, essa filha me fez aprender. E mais: pra mim, não existe medo. Eu não tenho medo de nada. A vida me fez assim.
PIERINA MORETTO KOHLER
Carol já havia superado alguns desafios e estava apta a aprender mais. Era momento de trocar novamente de escola. Aos 17 anos, a jovem entrou na 5ª série da Escola São Francisco e, daí em diante, não repetiu mais nenhum ano letivo. Enquanto isso, a mãe concluiu o Fundamental e ingressou no Ensino Médio, e admite:
– Rodei dois anos de propósito para esperar a Carol chegar no Ensino Médio. É loucura, né?
Ambas estudam lado a lado nas salas de aula do Instituto Estadual Rio Branco, na Avenida Protásio Alves. Na noite em que a reportagem esteve no local, assistiam a uma aula de química no laboratório, concentradas e bem integradas ao restante da turma.
– Na escola, é a Carol que me ajuda. Porque ela sabe pesquisar, eu não sei. Quem tira nota melhor sempre é a Carol – reconhece Pierina.
Lições sobre o bullying
Sempre que Carol chegava em casa reclamando de gozações dos colegas em algum dos lugares que estudou, Pierina tirava da própria vivência suas lições.
– Eu só tenho um olho, imagina o que passei dentro de uma escola. Pra que preconceito, tu é perfeita. O que sobra pra mim, que tenho um olho só?
Pierina relata que já nasceu sem o olho direito. Exames demonstraram que ele nunca se desenvolveu.
– Já tentei botar olho de vidro, mas não aguento, tirei tudo (risos). Eu me sinto bem assim. Só quando alguém me diz eu lembro que tenho só um olho, senão nem sei.
Projetos para o futuro
Pierina acha que já estudou o suficiente. Mas Carol tem projetos para o futuro, quer fazer Administração de Empresas e trabalhar em um escritório.
De poucas palavras, a jovem conta que começou a trabalhar aos 14 anos, como menor aprendiz, e atualmente é jovem aprendiz em um hipermercado. Com o valor que recebe, ajuda com as despesas de casa, compra roupas e coisas para si.
Ambas estão guardando dinheiro para a formatura do Ensino Médio, marcada para 12 de janeiro de 2024.
Carol diz que se sente pronta para ir para a faculdade sem a mãe. Pierina ressalta:
– Eu quero que ela tenha uma profissão, para não depender de ninguém. Por isso que eu incentivo e ensino as coisas. Não estou te carregando, filha, tu não é aleijada. Estou junto contigo, te ensinando.
Participe
- Conhece alguma guerreira que mereça ter a sua história contada pelo Diário Gaúcho? Mande um e-mail para lis.aline@diariogaucho.com.br ou envie mensagem via WhatsApp (51) 99947-0487.