Todos os dias, Daiana de Souza precisa ativar, no mínimo, quatro versões de si: a mãe, a empreendedora, a dona de casa e a mulher. Seu tempo é dividido entre tomar conta da filha, Brigitte de Souza Saueressig, seis anos, administrar o próprio negócio, organizar a residência, em Campo Bom, e cuidar da própria saúde física e mental. Para dar conta disso, a rotina começa cedo.
Aos 44 anos, ela acorda por volta das 7h e prepara o café para tomar com a filha. Depois, ajuda Brigitte com o tema e arruma a casa. Às 11h, começa a fazer o almoço. A rotina da manhã fica ainda mais intensa nas terças e quintas-feiras, quando a menina faz natação, às 10h. Após o almoço, Daiana ajuda a filha a vestir o uniforme e organiza a mochila e lancheira. Pouco antes das 13h, as duas saem de casa e caminham até a escola, que é perto de onde moram.
— Quando estou arrumando as coisas, ela fica ali desenhando. Às vezes consigo participar mais e, às vezes não, porque de tarde tenho o meu trabalho. Então, procuro já deixar tudo organizado, mas todo dia é uma correria. Às vezes a gente se atrasa, daí costumo pedir para ela fazer alguma coisa para me ajudar — conta a mãe, enquanto prepara arroz, feijão, farofa, massa e ovo para o almoço e cookies de banana para o lanche da menina para a escola.
Até Brigitte nascer, Daiana atuava como jornalista em Novo Hamburgo. A prematuridade da filha, que nasceu aos oito meses e ficou 11 dias internada na UTI, lhe deu a certeza de que não queria retomar a rotina de antes. A prioridade passou a ser curtir a infância de Brigitte.
Quando a filha começou a comer, surgiu a ideia de criar receitas saudáveis. Uma coisa puxou a outra, e os escondidinhos, sopas, panquecas sem trigo e pães de queijo para crianças se tornaram um empreendimento, o Comidaria.
— Troquei o jornal pela cozinha e nunca me arrependi. Não consigo mais me imaginar com aquela rotina, porque eu não tenho rede de apoio. Tem minha mãe, que mora em Tramandaí, tem a vida dela, e tem minha irmã, que mora no Exterior. Se eu fosse trabalhar fora, quem ia buscar a Brigitte na escola, acompanhar e fazer o almoço? Teria que ter algum desconhecido aqui em casa o dia inteiro, cuidando da minha filha por mim e não era o meu objetivo.
Tempo para cuidar de si
Durante os três primeiros anos de Brigitte, Daiana se anulou e deixou sua versão mulher em segundo plano. Ela conta que precisou desse processo para entrar de cabeça na maternidade e se desconstruir.
— Para mim, a maternidade é uma transformação diária. E não só uma transformação, mas uma desconstrução de quem eu era e de quem eu sou hoje. A Daiana antes de ser mãe tem várias vivências, mas nenhuma se equipara a essa da maternidade. Eu não seria a mulher que sou hoje se não fosse a Brigitte — afirma.
Mas a empreendedora sempre considerou fundamental estabelecer uma rotina para a filha. Foi assim que conseguiu encontrar também um espaço para si. Enquanto Brigitte dormia, por exemplo, Daiana priorizava um “banho decente” e um momento de silêncio, que ajudavam a dar uma refrescada na mente para retomar às atividades. Hoje, ela destaca que segue valorizando seu tempo livre, seja ele uma tarde inteira ou apenas duas horas.
Como Brigitte dorme cedo, a empreendedora também tem parte da noite “off” para relaxar:
— Ela chega da escola, janta, toma banho e vai dormir. Daí eu consigo fazer as minhas coisas, tipo assistir uma série e fazer algo para eu comer. Faço uma pizza, uma brusqueta, tomo minha cervejinha, vou para o sofá e olho alguma coisa. É o meu tempo, me tira do eixo se eu não tiver esse desligamento antes de dormir para começar outro dia.
Nos finais de semana, quando Brigitte vai para a casa do pai, Daiana também curte seu tempo sozinha. Não tem o costume de sair e comenta que, antes, aproveitava sábados e domingos para adiantar alguma encomenda de comida, mas, nos últimos meses, tem se permitido a apenas “fazer nada”.
Sempre vão julgar uma mãe, seja aquela que volta para o trabalho ou aquela que abre mão, que foi o meu caso. Eu optei, foi uma escolha que fiz e não me arrependo em nenhum dia da minha vida.
DAIANA DE SOUZA
Mãe, jornalista e empreendedora
— Às vezes limpo a casa, mas só se eu estiver disposta. Se não, deixo para a semana. Eu priorizo ajeitar minha cabeça. Preciso estar bem, porque no domingo ela volta e eu tenho que estar com a cabeça boa para recebê-la. Tenho priorizado muito minha saúde mental. Daí eu fico aqui, ajeito as coisas, tomo um sol no pátio, olho filme. É o único dia que ela não dorme em casa, se eu for querer fazer mil e uma coisas, não descanso — diz.
Pensando em sua saúde física e mental, Daiana retomou recentemente uma antiga paixão: a natação. Ela conta que começou a nadar ainda criança e manteve o hábito inclusive enquanto estava grávida de Brigitte. Após o nascimento da filha, tentou retomar a prática em diferentes momentos, mas não deu conta. Agora, aproveita o esporte quartas-feiras à tarde, enquanto a menina está na escola.
Ela conta que há pouco tempo também adotou um hábito para resgatar sua autoestima: se arruma e passa batom, mesmo que seja apenas para levar Brigitte na escola ou ficar na cozinha trabalhando.
Julgamentos e culpa
Em meio à intensa rotina com a filha, Daiana ressalta que ainda está aprendendo a se desprender da opinião alheia. Ela conta que foi e ainda é muito julgada pela decisão de deixar a carreira de jornalista:
— Sempre vão julgar uma mãe, seja aquela que volta para o trabalho ou aquela que abre mão, que foi o meu caso. Eu optei, foi uma escolha que fiz e não me arrependo em nenhum dia da minha vida. Mas as pessoas julgam e é difícil não dar bola. Às vezes a gente se questiona se está no caminho certo, mas a resposta está aqui dentro, na nossa vivência.
Se a mulher se esvaziar e não tiver tempo de se nutrir novamente de amor próprio, autoconfiança e sentimento de utilidade, o que vai sobrar para a criança? Ela não terá mais nada para dar. O autocuidado fará com que ela esteja se nutrindo e preservando a própria identidade.
RAISA ARRUDA
Psicóloga, Mestre em Saúde Coletiva e especialista em assuntos de maternidade
Mesmo assim, comenta que a culpa já atrapalhou bastante, principalmente porque sempre priorizou a linha da disciplina positiva, que exige muita paciência. No início, se cobrava por às vezes não ser tão paciente ou fazer algo diferente daquilo que a disciplina positiva pede. Hoje, percebe os erros, sabe quando voltar atrás e pede desculpas à filha quando preciso.
— Claro que às vezes sofro, penso por que fiz daquele jeito. Mas aprendi a identificar e aceitar o erro. Minha filha precisa crescer sabendo que todo mundo erra e que está tudo certo. O importante é estar pronta para recomeçar depois de um erro, fazer diferente. Então, a culpa hoje não me afeta mais e, se tenta afetar, dou um jeito de acabar com ela, porque não leva a nada. Acho que cada mãe faz o seu melhor — finaliza Daiana.
Momentos para si devem ser priorizados
A psicóloga Raisa Arruda, mestre em Saúde Coletiva e especialista em assuntos de maternidade, aponta que, desde a gestação, as mulheres passam por uma vulnerabilidade psicológica muito intensa dadas as mudanças pelas quais passam. Por isso, qualquer mãe fica suscetível a ter sua saúde mental afetada de forma mais intensa, seja pelos hormônios, cobranças, pressão social, problemas de autoestima e as próprias expectativas em relação àquele momento.
De acordo com a especialista, essas mulheres precisam entender que ninguém é capaz de conta de tudo e que não há como ser perfeita em todos os aspectos. Para aliviar a rotina e conseguir incluir momentos de autocuidado, ela afirma que é importante abrir espaço para que, a partir de determinada idade, a criança tenha certa autonomia e seja minimamente capaz de cuidar de si.
— Tem uma idealização social de que uma boa mãe é aquela que abre mão de tudo em prol dos seus filhos. E é complicado porque reproduzimos esse discurso ainda hoje, mas se a mulher se esvaziar e não tiver tempo de se nutrir novamente de amor próprio, autoconfiança e sentimento de utilidade, o que vai sobrar para a criança? Ela não terá mais nada para dar. O autocuidado fará com que ela esteja se nutrindo e preservando a própria identidade — ressalta.
Raisa comenta que esse autocuidado precisa ser diário, mas que não se trata de algo extraordinário: basta adotar pequenas atitudes de cuidado consigo, como tomar um banho demorado, lavar o cabelo, passar um hidratante e comer algo que se gosta. Também diz que é preciso elencar prioridades e saber que algumas coisas precisarão de mais tempo dedicado, enquanto outras ficarão em segundo plano até que possa se dedicar a elas:
— Ninguém dá conta de tudo sozinha. É preciso tirar dos ombros o peso de que a responsabilidade para que as coisas funcionem é unicamente sua. Tem que abrir mão da ideia de que rede de apoio é só família e de que só pode aceitar ajuda se alguém oferecer.
Jênnifer Puls, psicóloga do Hospital Humaniza, do CCG Saúde, acrescenta que não há uma receita de bolo: cada mulher tem uma demanda e sente falta de alguma coisa que fazia antes de se tornar mãe. Além disso, com o nascimento do bebê, as prioridades mudam, mas é importante se organizar para ter um tempo de qualidade para si e praticar atividades que gosta, ainda que não sejam as mesmas.
— A rede de apoio vem muito para isso: para ela não ter medo de pedir ajuda. Sabemos que nem sempre há uma rede presente, mas sempre tem alguém e ela precisa ficar confortável com essa situação. Saber que pedir ajuda não vai a diminuir como mãe — reforça.