Por Jajá Menegotto
Mestra em Ciências Sociais, pesquisadora e redatora
Uma mulher está deitada de lado em uma cama, de costas para quem observa. Ela tem os cabelos pretos presos em um coque, veste blusa de manga cavada branca e calça cinza. No fundilho, há uma mancha de sangue. No lençol sobre o qual ela está, outra mancha de sangue. A mulher é a escritora Rupi Kaur, e a imagem integra a série fotográfica Period, criada por Rupi e sua irmã Prabh Kaur. Em 2015, a autora indiana compartilhou a foto no Instagram. A rede baniu a imagem. Rupi postou novamente e, de novo, o Instagram removeu a foto, alegando que “não segue as normas da comunidade”. Antes, homens deixaram comentários como “você é nojenta”, “em breve poderemos fazer bebês em laboratórios e não precisaremos mais de mulheres”. Após a foto ser censurada, Rupi recebeu ameaças de morte e estupro.
Menstruar não é só um fato biológico que acontece todo mês.
Eu sei, a gente sabe – ou deveria saber –, que a menstruação é um processo fisiológico que ocorre para a maioria das pessoas com aparelho reprodutor feminino. É o período em que o endométrio, a camada mais interna do útero, é eliminado em forma de sangue. Isso ocorre todos os meses para todas as pessoas que menstruam hoje no planeta: cerca de 1,8 bilhão de meninas, mulheres, homens trans (que não fizeram intervenções cirúrgicas, nem hormonização) e pessoas não binárias. Ou seja, cerca de 26% da população mundial passa de três a sete dias por mês menstruada. No Brasil, 60 milhões de pessoas menstruam, 30% do país menstrua.
Ao longo da história, pouco falamos sobre menstruação e muito a significamos e ressignificamos. No Ocidente, transformamos o processo em algo que nos ensinam a esconder, que nos dá vergonha, que na menarca funciona como um passaporte para a ficção da feminilidade.
Em nossa cultura, a relação entre vergonha e o corpo feminino é simbiótica. A vergonha é uma emoção que exerce controle social dos corpos, em especial das mulheres. Sentimos vergonha pelo que nossos corpos são – menstruam, têm pelos, cheiros, rugas – e pelo que não são, mas esperam que eles sejam.
A filósofa Iris Marion Young tem uma boa expressão para a vergonha da menstruação: menstrual closet. Mantemos nossa menstruação no armário até na linguagem, já que quase nunca a chamamos pelo nome.
Na minha pesquisa de mestrado, que se debruçou sobre as experiências menstruais de adolescentes de uma periferia urbana, pude observar e estudar diferentes perspectivas sobre o tema. Uma das primeiras meninas com quem conversei disse que a menstruação “é um sangue sujo que desce pela vagina”. Se você for ao supermercado hoje e reparar nas embalagens de absorventes, vai ler “limpa e fresca”, “odor block”, “com perfume”, “aroma floral que ajuda a controlar odores”. O fluxo menstrual não é sujo. É muco e sangue.
Menstruar é ser afetada por uma conjunção de normatividades diferentes e, às vezes, conflitantes.
Procure no Google respostas para dúvidas menstruais. É comum encontrar afirmações – muitas com fontes biomédicas ou da indústria de femcare – como “o ciclo normal é de 28 dias; a perda de sangue por período menstrual é de 30ml a 80ml; cólica e TPM são normais; cólica muito intensa é dismenorreia; extrema tristeza, irritabilidade, raiva ou desânimo é TDPM; pílula contraceptiva é uma forma de proteção contra doenças”. Mas também há ideias que pretendem ser emancipatórias, vindas de alguns movimentos de mulheres. “Usar coletores é mais legal do que absorventes descartáveis; o sangue menstrual é sagrado; menstruar é uma experiência empoderadora; seu ciclo é uma conexão ‘feminina’ com a ‘natureza’”. E assim nosso repertório menstrual é moldado por imperativos. Porém, todos esses discursos que prescrevem verdades menstruais podem acabar transformando várias experiências particulares em menos legítimas, menos feministas, menos passíveis de acolhimento, menos “normais”, não dando conta da complexidade da vida real e produzindo um ideal menstrual impossível para muitas pessoas.
Dia 28 de maio é o Dia Internacional da Dignidade Menstrual. Nos últimos anos, o tema da pobreza menstrual vem ganhando espaço em agendas políticas globais e locais, e a data parece ser um marco da visibilidade que o assunto começa a alcançar na esfera pública. Quando falamos sobre probreza menstrual, estamos tratando de três eixos chave – falta de acesso a itens de rotina menstrual, a informação sobre o assunto e o saneamento básico. O tema é para lá de relevante e merece toda a atenção, especialmente do poder público (é essencial frisar que as políticas públicas que estão em ação ou em pauta hoje resultam de lutas e movimentos da sociedade civil e de mulheres na política).
Tão importante quanto garantir acesso a produtos, informação e recursos para o gerenciamento menstrual de todas as pessoas que menstruam, são as questões simbólicas que a menstruação carrega. Seus sentidos socioculturais são reflexo de um sistema que há séculos controla, vigia e constrange os corpos das mulheres. Que até hoje os vê como compulsoriamente reprodutivos, abjetos, desviantes e descontrolados. Sentidos que são ainda mais violentos e injustos para meninas e mulheres negras e pobres.
Entre tantas questões desse 28 de maio, também vale refletir: a quem interessa não falar sobre menstruação?