Autora de Coisa de menina? e Lupa da alma, Maria Homem é uma das psicanalistas de maior renome no Brasil. A intelectual expande a psicanálise para além do consultório e atua na esfera pública refletindo sobre questões como conflitos, política e temas contemporâneos, como gênero, vida digital e diversidade. Esses foram alguns dos assuntos abordados em entrevista durante o programa Timeline, da Gaúcha, nesta segunda-feira (4).
No programa, a psicanalista, que é uma das convidadas da temporada 2022 do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, respondeu sobre o "esgotamento" de sua área de atuação:
— A psicanálise, como qualquer espaço de pensamento, qualquer ciência , no sentido de metodologia para ter ciência de alguma coisa, para poder conhecer melhor alguma coisa, nunca está acabada, nunca está desenhada. Tanto que a gente vê os circuitos da espiral da física. Primeiro a gente achava que a terra era plana, depois que era redonda, depois que era o centro do universo, depois que era elíptica, depois que não era o centro do universo... E assim a gente vai maturando, tanto o conhecimento quando o nosso próprio lugar diante desse conhecimento. Vai ajustando o lugar narcísico da gente.
Maria Homem ainda refletiu sobre o impacto da pandemia nas relações. Visualizando a crise como um trauma — e aqui a psicanalista define trauma como "uma vivência de alta densidade que o indivíduo ainda não consegue processar" —, ela afirma que nem todos viverão esse momento da mesma maneira. De acordo com ela, vivências como essa dão espaço para o questionamento e para a possibilidade de elaboração:
— É positivo, de alguma maneira, o conceito de crise. Não é que eu estou desejando o trauma para todos. Mas, sem dúvida, se a gente puder se reinventar, se repensar e ter consciência, por exemplo, da violência que funda o Brasil, que a gente sempre recalcou com o imaginário de um homem alegre, cordial e dançante, a gente vai poupar mais 500 anos de exploração absurda. [...] Você só consegue medir isso porque você sofreu trauma de ver "meu Deus, espera aí, o mundo virou o que?", daí você fala "para tudo, eu estava errada na premissa". Que bom, hoje a gente está menos errados na premissa.
De acordo com a pesquisadora, o processo de reconhecimento de um trauma, porém, não é fácil ou sequer rápido. Seja no âmbito individual, no divã do consultório, ou no social, de uma consciência coletiva de um grupo como família, empresa, cidade ou país:
— Demora uns meses ou uns anos para falar "opa, espera aí, eu preciso reconhecer que isso me doeu". Às vezes, você tem um momento catártico numa sessão e você chora e diz "nossa, eu nem sabia que isso tinha me atingido tanto"[...] Tem um mal estar, só que você não conseguiu se apropriar daquilo que te doeu em algum momento e você precisou jogar em algum lugar. Normalmente tem a ver com uma desidealização de você mesmo.
O olhar externo sob a nossa vida
O impacto da tecnologia na vida e nos negócios nos próximos 30 anos será o tema que norteará as conferências do Fronteiras do Pensamento. Maria Homem, por sua vez, trará em sua fala a abordagem da tecnologia e subjetividade, por meio de cinco pilares: olhar, pensamento, corpo, afetos e poder. Sobre o comportamento dos indivíduos diante do mundo virtual, a autora faz uma reflexão sobre o olhar do outro sobre a nossa vida.
— Antes a gente tinha uma ideia que Deus tava fora (de nós) e era uma ideia abstrata, então ele me olhava. Onipotente, onisciente e onipresente. Quando a modernidade diz "vamos fazer o controle, a legislação dos comportamentos", os costumes vão entrando cada vez mais na lei dos homens, não só nos sacerdotes [...] É o vizinho, a câmera de vigilância, o outro, o Estado que vai te legislar. O que a gente está fazendo nesse terceiro momento histórico lógico é que a gente está oferecendo a nossa vida e a nossa intimidade para o olhar do outro. A gente que está expondo e dando de graça. Eu to dizendo como é minha relação, o que eu acho, o que eu penso, o que eu como, como eu voto, qual a minha opinião sobre tudo, até sobre coisas que eu não entendo.
Esse fenômeno é definido pela intelectual como "a derrota da filosofia e a vitória da doxa". Ela relembra o início da virada filosófica, quando a lógica, o silogismo e a matematização chegam para, como ela define, "organizar o reino da opinião". O que acontece hoje em dia é o contrário:
— É difícil largar o osso do narcisismo. A gente pega um lugar de potencia imaginaria e diz "vamos lá". Toda essa nossa movimentação hiper egoica, inflacionada, é uma defesa desesperada para esse novo momento que a gente está sendo obrigado a se deparar com o nosso lugar ínfimo diante de tudo.
Na entrevista, Maria Homem ainda destacou sobre a dificuldade de ouvir o outro:
— O mais difícil tá sendo a gente poder escutar o outro, deixar reverberar no eu e, de alguma forma, poder se conhecer. Porque a gente põe o dedo? Por que a gente não escuta? Por que a gente acelera? Porque ta muito difícil ter a relação com o outro que poderia revelar coisas de mim mesmo. Como se fosse um casal dá para visualizar melhor. É como se você estivesse o tempo todo na briga, na DR, apontando o dedo, acusando. Calma. Deixa o outro falar, deixa você falar, se escuta, escuto outro. Somos dois seres, dois sujeitos, vamos peitar amorosamente de preferência, se permitir brotar aqui dois seres.A gente está sofrendo muito com esse outro e com a gente mesmo.
O Fronteiras do Pensamento 2022
A temporada 2022 do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento debaterá o impacto da tecnologia na vida e nos negócios nos próximos 30 anos. Grandes pensadores da atualidade compartilharão ideias sobre ciência, tecnologia, evolução, inovação, humanidade e sociedade digital.
- Serão 12 conferências, em encontros presenciais e online. A primeira está marcada para 10 de agosto, com Stuart Firestein e Natalia Pasternak. Os demais conferencistas são Frédéric Martel, Steven Johnson, Luc Ferry, Élisabeth Roudinesco e Marcelo Gleiser (presenciais), Martha Gabriel, Mayana Zatz, Sidarta Ribeiro, Jorge Caldeira e Maria Homem (online).
- As inscrições podem ser feitas no site fronteiras.com. Saiba mais pelo fone (11) 9-7624-7423 ou pelo WhatsApp (11) 9-3775-5752. A cobertura completa de GZH, com entrevistas, artigos e textos sobre as conferências você acessa em gzh.rs/fronteiras.
- O Fronteiras do Pensamento, que está com passaportes à venda, tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre e Icatu Seguros. Parceria Cultural Casa da Ospa e Bienal do Mercosul. Promoção Grupo RBS.