Nilton Mullet Pereira (*)
Um movimento contra a vacinação de crianças entre cinco e 11 anos tem sido, nas últimas semanas, o fator de mobilização de pessoas que reclamam uma ilimitada liberdade de expressão. Mas não se trata apenas disso. Sob a salvaguarda de um pretensioso direito de falar e de opinar sem restrições, inúmeras manifestações racistas, homofóbicas, transfóbicas, gordofóbicas, discriminatórias, além da exibição escancarada de símbolos e sinais nazistas ou da Ku Klux Klan, têm sido pronunciados sem pudor e sem qualquer vergonha; pior, sem a devida represália por parte da sociedade e do Estado, exceto pelas resistências dos movimentos sociais ou por agentes da sociedade civil organizada.
Discurso de ódio não é opinião e não está salvaguardado no princípio da liberdade de expressão. Opinião não é conhecimento, muito menos uma obviedade incontestável, logo, não está livre da problematização e do questionamento.
Nesse sentido, não existe o direito de opinar contra a vacina, sobretudo quando os argumentos que sustentam tal opinião são carentes de dados empíricos ou de estudos científicos. Não existe o direito de defender um medicamento que não tem eficácia comprovada por estudos para o coronavírus ou para qualquer outra doença. Não existe, principalmente, o direito da existência de um partido político para os nazistas. Não existe o direito de amainar os efeitos desastrosos da escravização, no Brasil.
A existência é o princípio que nos une como seres da natureza. Existir é a força que nos faz perseverar e ser mais. Logo, qualquer forma de opinião/manifestação que ataque as existências não pode conviver entre nós. Discursos de ódio produzem a diminuição das potências de existir de diversas pessoas, grupos, seres e, têm o objetivo de limitar os modos de vida e as experiências que podemos ter para pensar, problematizar a realidade e criar novas possibilidades de futuro.
Contudo, temos visto seguidamente, com muita preocupação, manifestações na internet, em programas de rádio e nas redes sociais que têm procurado criar uma ideia de que há um clima de perseguição à opinião alheia. Como se as reclamações dos movimentos sociais diante de piadas ou manifestações preconceituosas fossem maneiras de impedir a liberdade de falar e de se expressar.
Ora, está suposto nessa construção discursiva a noção de que, se há liberdade de opinião, então tudo pode ser dito, ainda que os ditos impliquem diminuir a existência de outrem e produzir efeitos tristes na vida de inúmeras pessoas. Ao tentar criar a sensação de que “quase mais nada se pode dizer”, essa construção discursiva fortalece a posição de quem acha “normal” fazer piadas com pessoas que não possuem as medidas padronizadas pelo império perverso da beleza; sustenta a opinião de indivíduos que não se importam em os efeitos caudados pelos genocídios impetrados contra os povos africanos escravizados e contra os povos indígenas; e cria a ideia de que há o direito de se reproduzir opiniões que defendem que o partido nazista poderia existir livremente entre nós, num evidente desrespeito pelas memórias dos milhões de assassinados e pelos seus familiares no Holocausto.
Esse clima de que não se pode perseguir a opinião é endossado por um diagrama que tem criado enunciados que estão nas bocas e nas redes sociais de muitas pessoas. Uma das asserções mais perigosas é aquela que diz que “o mundo ficou chato”. Outro enunciado muito comum e ainda mais repetido surge quando os movimentos identitários ou sociais, ou pessoas em geral, condenam determinadas expressões ou piadas. Trata-se do “isso é mimimi”, endereçado justamente a quem procura resistir e impedir que se possa enunciar opiniões negacionistas ou discursos de ódio. Via de regra, os alvos são militantes ligadas aos movimentos feministas, aos movimentos LGBTQIA+, aos movimentos negros, aos movimentos indígenas... A expressão “isso é mimimi” tenta não só demonstrar solidariedade a uma opinião ou discurso de ódio que, notadamente, diminui a existência de determinados modos de ser. Mas também quer invalidar o discurso da resistência e a própria militância que se volta contra as discriminações.
É importante enfatizar que tanto o “o mundo ficou chato” quanto o “isso é mimimi” são enunciados que se constituem como um extrato de saber, que é um certo lugar a partir de onde muitas pessoas falam, acusam, criticam e reclamam o seu suposto “natural” direito de liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, um e outro constituem um diagrama de poder, que pretende cercear a luta política, que quer impedir as pessoas que sofrem os efeitos dos discursos de ódio e discriminatórios de se contrapor e de militar pelo direito de existir e de não aceitar relações que diminuem as suas potências de ser e de existir.
Mas, diferentemente do que afirmei no início e no título deste texto, discurso de ódio é sim opinião. O que ele não é, é conhecimento, complexidade, experiência. Mas é uma opinião que se constitui sem dados empíricos; sem pesquisa científica; sem problematização conceitual; sem consideração das histórias e das memórias dos diferentes povos e grupos. É uma opinião que revela o desprezo pela complexidade do real e aposta forte no negacionismo. Trata-se de uma opinião que, em uma sociedade livre e democrática, não pode aparecer, ser visível, ser enunciada.
Tão grave quanto enunciar um discurso de ódio ou de negar a existência ou o conhecimento e a pesquisa, é partilhar do diagrama que tenta invalidar a luta antifascista, a luta antirracista, feminista e todos os movimentos identitários que, incansavelmente, procuram denunciar os discursos de ódio e todos os negacionismos.
“O mundo ficou chato”; “Quase mais nada se pode dizer”; “Isso é mimimi”. Eis enunciações através das quais o campo da disputa argumentativa e dos conflitos de ideias cede lugar ao império das obviedades e ao governo da opinião. Ter opinião é algo importante, mas, tornar a opinião uma verdade absoluta construída por uma expressão lida em uma rede social, é se deixar abater pelo perigo da simplificação da vida e pelo perigo de se tornar passivo diante do sofrimento alheio.
Isso não é mimimi e o mundo só tem se tornado chato para quem não quer perder os privilégios, seja de falar o que quer, seja de compartilhar as riquezas e os espaços públicos com todas as formas de existir.
(*) Professor de História na UFRGS