"Cala a boca". "Você não é nada sem mim". "Ninguém vai acreditar em você". "Isso fica entre nós".
Frases como essas estão em uma parede do saguão de entrada da Escola Estadual Presidente Kennedy, em Cachoeirinha, na Região Metropolitana. Escritas em camisetas brancas, que foram manchadas de tinta vermelha, as expressões não são estranhas para muitas pessoas, principalmente para as mulheres.
A ideia de trazer o tema da violência doméstica e dos relacionamentos abusivos para dentro da escola foi da professora Daniela Rocha Machado, que ensina sociologia e história. A partir de um pedido que veio dos próprios alunos, a educadora quis ir além das palestras e pediu que as turmas expressassem nas camisetas o que sentiam. Foi então que os relatos começaram a aparecer e mostraram que esta não é uma realidade distante dos estudantes.
— Muitas frases vieram de relatos de dentro de casa, como essa aqui que foi uma que me impactou bastante: "Você é louca". Era um trio de meninas que, quando estava pintando a camiseta, uma delas relatou que o padrasto chamava a mãe de louca… até que um dia bateu nela — conta a professora, enquanto segurava a peça de roupa repleta de mãos pintadas em vermelho e com a frase escrita no meio, em tinta preta.
Crianças e adolescentes também são vítimas de violência quando testemunham brigas e agressões. Classificada como violência psicológica, a violação consta na Lei 13.431, de 2017. Em setembro deste ano, a Lei 14.188/2021 alterou o Código Penal, caracterizando esse tipo de conduta criminosa e estipulando uma punição para os agressores que praticarem esse tipo de violência contra as mulheres.
Segundo a coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público, promotora Luciana Cano Casarotto, o ato de violência já ocorre quando um jovem vê a mãe sendo agredida pelo pai ou sendo humilhada, por exemplo.
— Essa questão da violência psicológica deixa marcas mais profundas do que a própria violência física. É importante que tenhamos esse olhar atento para que não se ache que a criança está acostumada com uma discussão — explica a promotora.
Para Ranai Gallerani, psicóloga e pós-graduada em Impactos da Violência na Saúde Iramaia, é preciso romper as barreiras para que agressões não sejam vistas como algo normal, já que são vários os reflexos que a violência em casa pode causar na vida dos filhos. Nessas horas, a escola é um local importante para identificar que existe um problema e para prevenção.
— Isso pode trazer impactos ao desenvolvimento emocional, psíquico, dificuldades de aprendizagem, relacionais e estresse pós-traumático a depender da intensidade. Grande parte das violências contra mulheres, crianças e adolescentes ocorre em ambiente familiar. Se a escola for um espaço de confiança, a criança vai se sentir confortável para falar para a professora que está presenciando isso em casa — salienta a especialista.
A inspiração para a camiseta de uma das estudantes, de 16 anos, cujo nome será preservado em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), veio diante da sensação de impotência da mãe durante um relacionamento abusivo. A aluna do primeiro ano do Ensino Médio escreveu no tecido: "Eu não consigo lutar contra isso", uma das frases que mais escutava dentro de casa.
— É muito cruel para mim ver minha mãe, minha inspiração, passar por todos esses momentos, e muitas vezes, comigo junto. Ela sempre me dizia que não era culpa dele, que ela merecia passar por isso. Para mim, como mulher e filha única, eu sempre disse que minha mãe era minha inspiração, mas naquele momento eu sentia aquela trava. Era muito difícil pra mim. Essa camiseta é para ela — conta a adolescente, sendo logo após abraçada pelas colegas e pela diretora da escola, Marta Veiga.
— Eu não imaginava que ela tinha passado por isso — diz a diretora com os olhos marejados.
Felizmente, a menina conta que a mãe conseguiu "lutar contra isso" e hoje não está mais no relacionamento. Para a estudante, o projeto da escola ajuda meninas e mulheres a entenderem que não precisam passar por essas situações.
Para a professora Daniela, a discussão do tema já reflete na forma como os alunos veem os relacionamentos entre eles, para identificar quando algo não está certo.
Foi o caso das estudantes do primeiro ano Natália Tavares Goerl, 15 anos, e Isabella Brito da Silva, 16 anos, que ouviram a história de uma colega de sala de aula que passava por um relacionamento abusivo. Inconformadas, as duas decidiram escrever "Você não é nada sem mim", ameaça que a amiga ouvia do namorado.
— É uma frase muito comum, que a gente já ouviu várias vezes. É para desencorajar a vítima a denunciar — explica Isabella.
Entre os meninos, o projeto também trouxe uma nova visão sobre respeito. Pedro Augusto Choynowski Neto, 15 anos, conta que espera uma mudança de comportamento para que mulheres não precisem mais ouvir expressões como "Cala a Boca", que foi escrita por ele em sua camiseta.
— Se ela já dói em mim, imagina na pessoa (...). Isso pode fazer com que os meninos futuramente entendam o quanto é errado — salienta o aluno.
Como a escola pode ajudar
Para a psicóloga Iramaia, a escola deve ter uma postura acessível, disponível ao diálogo e atenta ao que o aluno precisa. Isso faz com que a equipe da instituição estabeleça relações de confiança para se colocar aberta a escutar, sem menosprezar o que é trazido pelo estudante.
Outro conselho da especialista é a comunidade escolar estar atenta a sintomas como apatia, retraimento, medo de figura de autoridade, mudanças bruscas de humor e autoagressão, que podem ser indicativos para situações de violações de direitos.
Em toda a rede estadual, a Secretaria da Educação ampliou as atividades com ações transversais, para que outras áreas, como os órgãos de segurança, Ministério Público e Conselho Tutelar participem da formação de alunos e professores por meio do Programa de Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (CIPAVE+).
É muito cruel para mim ver minha mãe, minha inspiração, passar por todos esses momentos, e muitas vezes, comigo junto. Ela sempre me dizia que não era culpa dele, que ela merecia passar por isso.
ESTUDANTE, DE 16 ANOS
Jovem que viveu violência psicológica em casa, junto com a mãe
Esse projeto procura mapear situações de violência e buscar formas de prevenção com atividades e palestras. Na escola Presidente Kennedy, onde o projeto das camisetas foi implantado, os alunos passam por um acompanhamento e a instituição conta com psicólogos parceiros para encaminhar aqueles que precisarem para atendimento.
Outra inovação nas escolas estaduais foi que pela primeira vez neste ano ocorreu uma parceria com o Comitê Interinstitucional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (EmFrente, Mulher) para criar a Semana Estadual Maria da Penha. O evento promoveu a conscientização sobre o tema do combate à violência com os alunos e professores.
Como denunciar
Qualquer pessoa pode informar sobre casos e orientar a mulher a buscar um serviço de atendimento. Conheça algumas formas de pedir ajuda:
- Além do Disque Denúncia 181, está disponível o Denúncia Digital 181, no site da Secretaria da Segurança Pública
- O WhatsApp da Polícia Civil (51 98444-0606) recebe mensagens 24 horas, sem a necessidade de se identificar
- A Delegacia Online tem novas possibilidades de registro para receber os relatos de violência doméstica. Permite fazer o boletim de ocorrência, com a mesma validade do documento emitido presencialmente, a qualquer horário e por qualquer dispositivo com internet
- Salas das Margaridas nas Delegacias de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPAs), para levar o acolhimento e o amparo especializado nessas unidades que mais frequentemente são a primeira parada das mulheres em busca de ajuda. Atualmente, existem 40 Salas das Margaridas e a inauguração de mais uma está prevista para os próximos dias no município de Ibirubá
- Para quem não tem acesso, pode procurar qualquer Delegacia de Polícia, além das 23 Deams hoje existentes no Estado
- Para socorro urgente em emergências, o número é o 190
- Defensoria Pública presta orientação e a defesa em juízo, das mulheres de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade. Orienta vítimas pelo Disque Acolhimento: 0800-644-5556. Também há o Alô Defensoria: (51)3225-0777
- No Ministério Público há a Promotoria Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar, no prédio do Instituto de Previdência do Estado (IPE) do RS, na Avenida Borges de Medeiros, 1.945. Telefone: (51) 3295-9782 ou 3295-9700. E-mail: promotoriadamulherpoa@mprs.mp.br
- Também no MP, há Grupo Especial de Prevenção e Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do MPRS. Aceita qualquer tipo de denúncia e dá orientações. E-mail gepevid@mprs.mp.br