Nas últimas quatro décadas, a propriedade da família Nogueira, no interior de Cruz Alta, noroeste gaúcho, recebeu um périplo de fiéis. Os religiosos cultuavam uma imagem de São João Batista, esculpida em madeira. A escultura se tornou referência: coberta por fitas coloridas, passou a ser venerada em procissões na comunidade. Nos períodos de estiagem, a estatueta ganhava banho, no intuito de pedir a volta da chuva.
Atualmente com 43 anos, Cléber Roggia Nogueira descobriu outro significado da relíquia: a peça que decora sua casa desde a infância é uma obra de arte barroco-jesuítica, talhada por indígenas guaranis há mais de 300 anos.
— É uma forma de reconhecimento e agradecimento de quem, no passado, levava a fé e a esperança às comunidades do Interior. Espero que siga perpetuando essa fé por muito tempo ainda — afirma o comerciante.
O São João Batista Missioneiro foi inicialmente mantido por curandeiros que se mudaram para as terras dos Nogueira nos anos 1970. Cléber relembra de ouvir do casal que o item estava com eles desde a geração passada e inclui mais um elemento à história: o nome do distrito em que morava o dono anterior da imagem seria uma homenagem dos vizinhos ao santo, hipótese também defendida pelo pós-doutor em História, Édison Hüttner.
— O pai dessa senhora, chamada Maria Isabel Oliveira de Matos, também era curandeiro: Estevão de Matos, muito famoso na coloninha São João. Ainda mais curioso é que o nome dessa localidade se deu pelo fato de esse curandeiro ter o São João Batista — complementa Nogueira.
A data da obra foi estimada pelo professor, que coordena o Grupo de Pesquisa Arte Sacra Jesuítico-Guarani e Luso-brasileira da PUCRS. A investigação durou cerca de um ano. Ele comparou o método utilizado pelos povos que formavam as reduções jesuíticas — espécie de cidades onde os padres conviviam com os indígenas.
— A escultura se enquadra no primeiro estilo de esculturas missioneiras, iniciado em 1625 no Paraguai, na Redução de Santa María del Iguazú. São esculturas com corpos rígidos, cabeças e mãos montadas, como essa — explica o estudioso.
Durante as missões jesuíticas, os indígenas demonstraram serem exímios na arte de replicar objetos a partir da observação. Inúmeras imagens foram produzidas no período, nessas comunidades. A mais notória das reduções, liderada por Sepé Tiarajú, construiu o que hoje é patrimônio mundial da Unesco: o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, ruínas localizadas no município de São Miguel das Missões. Por muitos anos, o espaço ficou abandonado e se tornou recorrente a retirada de materiais por parte da população. As peças eram incluídas em altares, santuários, ou usadas como decoração nas residências.
O santo pesa 3,7 quilos, tem 68 centímetros de altura e 22 de largura. Única peça não original, uma cruz foi acrescentada à escultura para exposição na Paróquia do Divino Espírito Santo, área central de Cruz Alta. Devido às aberturas na mão do santo e na base da estátua, imagina-se que ele carregava uma cruz de dimensões semelhantes. A peça permanecerá na igreja até o dia 24 de agosto. Depois, retornará à família guardiã.