Seis pessoas dividem os dois cômodos da residência da auxiliar de limpeza Clauer Anaisa Bilhalva Baptista, 46 anos. Além dela, do marido, José Carlos, e de dois filhos pequenos, a irmã, Cristiane, 42 anos, e o cunhado, Iuri, estão morando no local enquanto constroem a própria casa. A família reside na ocupação Vida Nova, na zona sul de Porto Alegre.
Na casa, existem dois celulares. O de José Carlos, pré-pago, tem acesso à internet. É por ali que ele vê notícias e ouve música. O outro, de Cristiane, sequer possui chip atualmente – muito menos internet. Também não há computador na residência.
– Mesmo quando eu tinha chip no celular, só podia usar a internet quando colocava crédito. E mesmo assim, durava pouco. Em dois, três dias, já acabava. Se eu preciso de qualquer coisa, pego o telefone do meu cunhado emprestado, ou tenho que pedir ajuda de outras pessoas – conta Cristiane.
Números
A situação de Cristiane não é um caso isolado. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE que, no quarto trimestre de 2019, pesquisou o acesso à Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), o percentual de domicílios em que havia utilização da internet subiu de 79,1% para 82,7% de 2018 para 2019. Mesmo assim, naquele ano, não havia internet em 12,6 milhões domicílios no país. Entre os motivos mais apontados para isso, estão falta de interesse (32,9%), o serviço de acesso ser considerado caro (26,2%) e nenhum morador saber usar a internet (25,7%). O rendimento médio por pessoa dos domicílios com utilização da internet (R$ 1.527) era o dobro da renda dos que não utilizavam a rede (R$ 728).
No Rio Grande do Sul, a situação é semelhante. Em 2019, internet era acessada em 84,3% dos domicílios gaúchos, com aumento de 4,3% em relação a 2018. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, o acesso chegava a 89,9% dos lares. Enquanto isso, porém, 10,1 mil domicílios no entorno da Capital e 688 mil no Estado permaneciam desconectados, apesar do crescimento.
O Coordenador do Programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Diogo Moyses, afirma que o acesso à internet é considerado um direito, por ser essencial para uma série de atividades. O especialista destaca que o acesso cresce no Brasil desde que a internet começou a ser oferecida comercialmente no país, no final da década de 1990. Porém, está longe de ser igualitário.
– Mesmo tanto tempo depois, não conseguimos fazer com que todos tenham acesso, especialmente à internet fixa, que permite um uso pleno. Também criamos modalidades de acesso que consolidaram o padrão de desigualdade que vemos de forma geral. Ou seja, a desigualdade no uso da internet reproduz desigualdades regionais – diz o especialista, que explica:
– Numa ponta, há pessoas que têm acesso a todas as modalidades (fixa e móvel). Na outra, estão aqueles que não têm acesso a nada, nem a um celular conectado. No meio dessa régua, existe o acesso precário. Hoje, estimamos que uma parcela que não chega a 40% possui acesso de qualidade.
Três níveis
Ou seja, mesmo entre os que estão conectados, há desigualdades profundas. Antropóloga e pesquisadora ligada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania (Naci), da UFRGS, Lúcia Mury Scalco afirma que a exclusão digital se dá em três camadas.
A primeira delas é o acesso aos equipamentos, que são caros e atualizados a todo momento. A segunda é o sinal da internet, que não chega a todos os lugares – uma questão de infraestrutura. Já a terceira barreira é o conhecimento.
– As pessoas não sabem mexer, não sabem o que precisa ser feito. Muitas vezes, têm um celular, mas não sabem baixar um aplicativo. A princípio, oferecer um serviço público online, por exemplo, parece muito democrático. Mas e quem não tem celular, ou não sabe acessar? – questiona Lúcia.
Pandemia potencializou desigualdades
O acesso à internet já é considerado essencial, e sua falta afeta a vida das pessoas de diversas formas. Em junho do ano passado, por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um Roteiro para a Cooperação Digital, documento construído após colaboração de uma série de entidades do mundo inteiro.
O objetivo é garantir que todas as pessoas estejam conectadas e respeitadas no espaço virtual, e indica oito passos para melhor cooperação. Entre eles, estão atingir a conectividade universal até 2030, para que todos tenham acesso seguro e barato à internet, e garantir a inclusão digital para todos, incluindo grupos mais vulneráveis.
É inegável também que a pandemia acelerou muitos processos, que passaram a ser totalmente ou parcialmente digitais, e fez as desigualdades tornarem-se ainda mais latentes.
– A desigualdade digital é decorrente especialmente das desigualdades que já existiam há muito tempo, econômicas, sociais e outras. E com a pandemia, ficaram muito evidenciadas – afirma a professora do curso de Serviço Social da Unisinos e coordenadora do Observatório da Realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio do Sinos (Observasinos), Marilene Maia.
A especialista aponta o auxílio emergencial, oferecido pelo governo federal durante a pandemia, como exemplo claro da situação.
– Parte da população em vulnerabilidade ficou descoberta. Era exigida uma documentação atualizada, que nem todo mundo tem. Muitos não conseguiram acessar o aplicativo. A pandemia potencializou muitas coisas, mas inviabilizou todo um processo de inclusão de um grupo considerável de pessoas, que já vivia em situação de exclusão – explica.
Diogo Moyses considera a educação como a esfera mais visível da vida entre as afetadas pela falta de internet durante a pandemia.
– Não pode ser natural que famílias de alta renda tenham acesso pleno, e os alunos de baixa renda tenham que pegar o celular emprestado das mães para realizar atividades. A internet é fundamental para a promoção da igualdade.
Solução complexa
A desigualdade digital é tão difícil de resolver quanto as demais. Segundo os especialistas ouvidos nesta reportagem, o caminho para democratizar o acesso à internet passa por esforços coletivos e investimentos por parte de governantes.
– Nos últimos anos, há um deserto de políticas públicas nesta área. A primeira coisa é encarar de frente o desafio de conectar todas as casas brasileiras com padrões razoáveis. Para isso, são necessários muitos instrumentos. Não existe uma bala de prata – diz Diogo Moyses, que segue:
– É preciso garantir que famílias que praticamente não têm renda possam ter acesso por meio de subsídios, expandir as redes. Ou seja, investimento público.
No mesmo sentido, Lúcia Scalco destaca a necessidade de democratização.
– Existem locais que são como buracos, não pega celular, internet, nenhum sinal. Sem isso, a pessoa não consegue ultrapassar as outras barreiras que podem existir. Uma pessoa não tem como colocar uma antena, não é ela que vai resolver, é o poder público.
Para Marilene Maia, a articulação de diversas esferas é fundamental para diminuir a exclusão digital. A professora ressalta a necessidade de fortalecer organizações locais:
– Entendo que a formação de lideranças, que possuem mais informações, precisa ser fortalecida. Essas pessoas precisam ter mais instrumentos para auxiliar suas comunidades.
Segundo o secretário Fernando Matos, do Gabinete de Inovação da Capital, a Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre (Procempa) possui 1.100km de rede de fibra de alta velocidade.
– Isso é um ativo importante, que pode ser meio para ampliar ações de inclusão digital – diz Fernando.
A Capital possui também cerca de cem pontos de wi-fi com acesso livre, e existe a intenção de aumentar essa cobertura. A Smed e a Procempa vão implementar o projeto “Aluno 100% conectado”, para que todas as escolas disponham de internet em fibra ótica, como apoio às atividades pedagógicas.