Final de ano costuma ser um período de balanço de atitudes individuais e coletivas. Diante da pandemia da covid-19, essa retrospectiva ganha novos contornos e lições em 2020. Em entrevista à Rádio Gaúcha neste sábado (26) de feriadão de Natal, o requisitado e popular historiador Leandro Karnal analisou o que fica deste ano atípico, refletindo sobre felicidade, sentimento de culpa e desigualdade social.
Gaúcho de São Leopoldo, Karnal é professor, historiador, graduado em História pela Unisinos e doutor pela USP. Ele é autor de vários livros sobre a história dos países e sobre o ensino de História, e palestra sobre vida, história, religião, política, filosofia, ética e comportamento humano. Atualmente é professor universitário na Unicamp.
Confira a entrevista completa:
Existe um luto no ar, mas, assim como a gente passa por uma grande guerra, os que sobreviveram devem preparar um mundo melhor.
Qual balanço o senhor faz da humanidade neste ano de pandemia?
Acho que é o ano da gente fazer a camiseta "Eu consegui!". É uma dor muito grande, mais de 180 mil mortos, economia destruída, muita gente morreu. Existe um luto no ar, mas, assim como a gente passa por uma grande guerra, os que sobreviveram devem preparar um mundo melhor. Tudo o que não nos mata nos torna melhores, diz Nietzsche. Ostra feliz não produz pérola. Estamos mais resistentes, e eu com muita vontade de que 2021 seja um ano melhor.
Desde o início da pandemia, muita gente falou sobre os lados positivos da pandemia. O que o senhor enxerga como lado bom?Preservando a ideia de que existe um luto e um necessário respeito pelas famílias — eu tive covid neste ano e pra mim foi leve, isso é um privilégio — , diria que foi um ano em que eu não viajei tanto, fiquei muito mais recolhido, estudei muito, li muito, fiz muitas coisas que o cotidiano não permitiria. Escrevi como nunca tinha escrito, tanto que ano que vem terei lançamento de livros. Tentei transformar esse limão azedo numa limonada. Eu consegui. Pensei: "reclamar não vai me ajudar, vou tentar aproveitar este tempo livre". Até perdi peso, foi só no finalzinho agora que soltei a resistência. Mas, claro, não importa o quanto eu tenha conseguido, é um ano de luto. Muitos brasileiros não chegarão em 2021. Espero que tenhamos tido consciência da importância do SUS e noção da desigualdade social no país.
Como sociedade, a gente não avançou muito?
Nunca percebemos tanto como a ação política pode melhorar ou piorar uma situação. Olhamos para países nos quais uma ação política rápida, dando exemplo, com recolhimento, com vacina rapidamente, estão melhores. Onde a pandemia foi negada, onde chefes tentaram politizar um vírus — o vírus não é de direita nem de esquerda —, tiveram resultados piores. Eu acho que foi um ano de revelação da importância das políticas públicas.
Nenhum problema que eu tenho me faz esquecer que ocupo um lugar privilegiado de classe média. Eu cansei, mas é um cansaço inferior ao verdadeiro cansaço das verdadeiras vítimas, que são os pobres e os trabalhadores de rua do Brasil.
E o cansaço, diminuiu?
Existe uma coisa importante que é perspectiva. Eu me engajei em um projeto de cestas básicas. Quando você visita um lugar com 12 pessoas em um único espaço, você não tem coragem de reclamar. Quando você vê entregadores subindo e descendo... eu percebo que meu cansaço em casa é tédio, e não cansaço. Já vi tudo que a Netflix passava, mas, às vezes, olhando homens e mulheres subindo e descendo para entregar comida e passando fome, eu percebo que não tenho direito à reclamação. Existe um cansaço até da máscara, mas nenhum problema que eu tenho me faz esquecer que ocupo um lugar privilegiado de classe média. Eu cansei, mas é um cansaço inferior ao verdadeiro cansaço das verdadeiras vítimas, que são os pobres e os trabalhadores de rua do Brasil.
O excesso da busca por felicidade não tem deixado as pessoas mais infelizes?
Não se deve confundir alegria com felicidade. Alegria eu sinto quando o café é bom, quando o banho é gostoso. Alegria não se confunde com buscar um estado com sentido. Ninguém pode ser alegre o tempo todo. Mas eu sou feliz, porque tenho uma vida que faz sentido. O fato de eu ter problemas, não faz eu deixar de ser feliz. Tristeza não é infelicidade. E alegria não é felicidade. Felicidade é feita de bons e maus momentos. Este é um ponto. O segundo ponto, como destacaram, é que temos um excesso de felicidade, mas é o excesso da publicidade de uma vida falsa. Quem acredita que o Instagram seja real é muito infeliz.
Tristeza não é infelicidade. E alegria não é felicidade. Felicidade é feita de bons e maus momentos.
A pressão por uma vida completa, tem aquele ditado "trabalhe com o que goste e nunca precisará trabalhar", é uma coisa recente?
Você gosta do seu trabalho e há milhões de desempregados, isso torna melhor. O fato de você exercer um trabalho com inteligência, reforça essa sensação. Há trabalhos piores. Se você não estiver cansado, você não trabalhou. O que não pode ter é um trabalho que lhe deixa derrotado. Encontro pessoas que fazem trabalhos simples e se sentem satisfeitas. Eu vou lhe dar um exemplo: quando alguém diz “nossa, você viaja muito, deve ser feliz”, então uma prostituta deve ser muito feliz porque transa o tempo todo? O trabalho cansa pelo autoritarismo do chefe, cansa pela chatice de cliente... Mas vamos convir: filho cansa, marido cansa, relações cansam, e eu me canso de mim mesmo. O trabalho não pode ser exceção. Mas não pode ser elemento de destruição e humilhação. Se meu trabalho não está bom, mas é o trabalho que eu posso fazer neste momento, o que posso fazer para sair dele? Para onde preciso ir para não permanecer no ponto que estou agora?
Como se tornar melhor o dia a dia?
Primeiro, entender que a dimensão trágica da existência é fundamental para qualquer coisa. A vida comporta dimensão trágica, não importa o que você faça. Alguém que você ama vai morrer. Não importa o quanto você se cuide, alguém vai ficar doente. Você tem que distinguir se a tristeza tem origem. Vamos imaginar que este verão seja quente em Porto Alegre. Eu acho que seja difícil que você veja o sol e o calor com muita alegria, você se sente mal. Se tem uma origem para sua tristeza, que seja passageira como uma temperatura elevada, isso faz parte da existência e é inviolável. Se não tem origem, pode ser depressão. Tristeza com uma origem passa. Eu perdi meu pai e minha mãe, mas o fato de meus quatro irmão sermos órfãos ajudou a nos reunirmos. Mas estar trancado em um quarto por muito tempo, isso é depressão. Não é natural que uma causa de tristeza se estenda por muito tempo. Mas não existe vida sem problema. Imaginar isso é infantilidade. Ser adulto é lidar com isso. A criança pensa em presente, o adulto pensa: “em quanto tempo vou pagar por esse presente?”. Isso é ser adulto.
As pessoas tinham muitos planos para 2020 e acabam por muitas vezes se culpando. Como se perdoar?
Quando começou em março, eu tinha muitos vinhos de primeira linha numa adega. Eu bebi todos os vinhos. A gente não morreu e eu encarei os vinhos de segunda linha. Quando tive covid, eu tinha uns vinhos ordinários, pensei "estou sem paladar" vou tomar estes agora. Tudo isso é um momento de muita excepcionalidade, a nossa tensão faz a gente beber demais, comer demais. Quando temos um problema grave, a adrenalina faz a gente focar no problema. Quando estou correndo de um animal selvagem, eu não penso no meu tratamento de pele. Este ano, focamos na sobrevivência. Não se culpe. Ninguém que escapa de um campo de concentração fica pensando "será que eu evolui?" (...) Agora pelo menos a gente se conhece. Conhece-te a ti mesmo. Esse é o passo de qualquer filosofia.
Como enxerga esse movimento redes sociais?
Não existe liberdade de opinião para crime. Existe liberdade de expressão para eu expressar subjetividades dentro da ética.
Temos problemas de ouvir opiniões diversas. A opinião dos outros nos incomoda. Só que antes não poderíamos nos expressar. A rede social neste momento é uma capilarização de que todos podem dizer alguma coisa. Tantos pessoas reais quando aquelas pessoas de gabinetes de ódio. Agora, essa toxicidade é uma coisa complicada. Eu vejo pessoas agredindo, mas, quando recebem uma resposta agressiva, dizem "Nossa, mas eu só exerci a minha liberdade de opinião". Não existe liberdade de opinião para crime. Existe liberdade de expressão para eu expressar subjetividades dentro da ética. Mas eu acho que não será o aprendizado que nos fará mudar, será o cansaço. Não será porque seremos melhores. Será como duas crianças no parquinho que se cansam.
Existe uma fúria contra a imprensa. Por que isto está ocorrendo?
Calar a voz do contraditório é uma maneira clara de dar poder apenas a quem controla a sociedade. É muito importante que o estado tenha medo do povo, e não o povo tenha medo do estado. E uma coisa que faz com que o estado tenha medo do povo é a imprensa livre.
Desde o mundo antigo, a nossa tendência é matar o mensageiro. Sempre quem traz notícia que eu não gosto, passa a ser o culpado pela notícia. Claro que a imprensa deve ser ética, mas não existe nada que justifique o cerceamento da imprensa. Como diziam os pais fundadores dos EUA, só há uma coisa pior do que a arrogância de pessoas que divulgam notícias: os ditadores que reprimem estas notícias. Eu prefiro um mundo com pessoas dizendo bobagens, do que um mundo onde só um diga bobagem, que é um governo autoritário Este mundo em que tem gente que exagera, lança fake news, é um mundo complicado. Este ano deveria demonstrar às pessoas a importância do jornalismo profissional, com fontes, ouvindo outro lado. Isso que cresceu este ano. Ao lado de pessoas que divulgaram fake news, temos o crescimento de uma imprensa nacional, que escuta o outro lado. A liberdade de imprensa é um dos grandes pilares do estado democrático de direito. Eu não defendo porque gosto de jornalistas, eu defendo porque calar a voz do contraditório é uma maneira clara de dar poder apenas a quem controla a sociedade. É muito importante que o estado tenha medo do povo, e não o povo tenha medo do Estado. E uma coisa que faz com que o Estado tenha medo do povo é a imprensa livre.