Na contramão da maioria, há quem ainda esteja mantendo o distanciamento social com rigor mesmo depois de quase um ano do início da pandemia de covid-19 no Brasil.
Sem se conhecerem, o desenvolvedor IOS e universitário Vinícius Chagas, 22 anos, a funcionária pública Lusivana Paloschi, 40 anos, ambos de Porto Alegre, e o casal Sandra e Nilo Laschuk, 71 e 73 anos, respectivamente, de Caxias do Sul, têm um pensamento em comum: consideram-se privilegiados por poderem permanecer em casa, mesmo estudando ou trabalhando, enquanto grande parte da população não tem esta opção. Os quatro saem apenas o extremamente necessário, pois alegam medo da doença ou de se tornarem vetores dela, podendo transmiti-la a outras pessoas.
Segundo a doutora em Psicologia Social e Institucional Zuleika Köhler Gonzales, professora do curso de Psicologia e Residência em Saúde Mental na Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), o medo pode servir, numa medida não excessiva, de mecanismo de proteção.
— Ter essa experiência do medo nos ajuda a manejar as dificuldades que enfrentamos no decorrer da existência. Fazer uma leitura de como vivemos, refletir sobre um cenário ameaçador é um aspecto salutar de como nos colocamos perante a realidade. Disto, pode resultar o temor ao que pode ameaçar a vida — expõe Zuleika.
A doutora em Psicologia Social e Institucional ressalta a importância de também analisar o cenário ainda mais amplo no qual a pandemia se insere, no qual a maioria não tem condições de seguir os protocolos exigidos para conter a covid-19.
— Numa sociedade extremamente desigual como a nossa, a pandemia só visibilizou os efeitos deste mundo que possibilita "segurança" para alguns e o não acesso às condições mínimas de se proteger (para outros), como o uso de um transporte lotado todos os dias e as condições de moradia em que a aglomeração é a forma possível. Penso que neste cenário, sentir medo torna-se parte constituinte de estar neste mundo.
Para Zuleika, permanecer em distanciamento social rigoroso torna-se uma oportunidade para o ser humano se experimentar de outras maneiras naquilo que valoriza, na sua relação com pessoas queridas, nos seus hábitos e projetos de vida.
— O isolamento pode proporcionar um espaço e tempo necessários para olharmos com mais cuidado para nós mesmos e para as coisas mínimas que fazem parte do dia a dia, apesar de toda a dor pela perda de tantas vidas — pontua.
Ao tomar conhecimento da iniciativa dos quatro, a infectologista Andréa Dal Bó, membro da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI), os elogiou. Ao mesmo tempo, ela faz um pedido aos mais jovens para manterem os cuidados determinados pelos protocolos por respeito a si e ao próximo.
— Atitudes de pessoas que mantêm o isolamento, saindo o necessário são extremamente louváveis, pois o que nós estamos vendo agora, numa situação de colapso da rede hospitalar, é muitos jovens circulando sem máscara e fazendo aglomerações. Eles levam o vírus para casa e, principalmente, àqueles que estão se cuidando — alerta a médica.
Nem mesmo o Natal e o Reveillón mudaram os planos de distanciamento social de Sandra, Nilo, Vinícius e Lusivana. As celebrações dos quatro, de fato, só serão realizadas depois da vacina.
"Cada dia é um desafio novo"
Na data em que completava seis meses de teletrabalho, Lusivana Paloschi, 40 anos, de Porto Alegre, decidiu voltar a praticar uma atividade física ao ar livre. Colocou os tênis, ajeitou a máscara e começou a correr na própria avenida em frente à casa onde mora com a mãe, Louvani Andrioli Paloschi, 74 anos, no bairro Vila Nova. Sem conseguir respirar, desistiu nos primeiros passos e voltou para casa, onde segue um distanciamento social rigoroso, iniciado em março deste ano.
Conhecida por estar sempre rodeada de amigos, seja em bares, cafés e parques da cidade, Lusivana, uma apaixonada por andar de bicicleta, tem se limitado a sair apenas uma vez a cada 15 dias para ir ao supermercado. Ao longo das semanas, ela se divide entre o trabalho como funcionária pública, os exercícios físicos com corda e no step improvisado com um pneu de carro e um pedaço de madeira, as conversas com a mãe e a meditação. Até a bicicleta ganhou um descanso temporário.
— A maior preocupação é com a minha mãe, que faz parte do grupo de risco. Desde o início, comprei a ideia de que a covid-19 é uma coisa perigosa. Não sei como o meu organismo reagiria, por mais que eu não faça parte do grupo de risco, pratique atividades físicas e tenha uma boa alimentação — argumenta.
Louvani, que participava das atividades comunitárias no bairro e visitava os pacientes do Hospital Vila Nova, também decidiu não sair de casa sem necessidade. Parceiras, mãe e filha aproveitam o quintal como única opção de lazer diário.
Os costumes herdados no início da pandemia seguem ativos na casa de Lusivana, como trocar de roupa logo que volta da rua, deixar os calçados na porta e higienizar todos os alimentos trazidos do supermercado. A funcionária pública admite não ter se adaptado à máscara. Por isso, evita ao máximo se expor fora do portão de casa. Quando vai às compras, aproveita e faz todas as atividades de rua necessárias para sair apenas uma vez. E se faltar uma cebola para o almoço, por exemplo, muda-se o tempero naquele dia até a nova ida ao mercado. Até trocar o chuveiro ela se arriscou sozinha, com o auxílio de dicas encontradas no Youtube.
— Neste longo período, aprendi a viver com menos e percebi que somos capazes de mudar muitos hábitos e aceitar novas situações sem percebermos. O ser humano é extremamente moldável e, às vezes, não quer ou não sabe como, mas é possível — ensina.
Evitando se lamentar de toda a situação incomum experienciada ao longo de 2020, Lusivana lembra das viagens que precisaram ser adiadas, como a que faria no meio do ano para os Estados Unidos, em celebração dos 40 anos de vida, e o passeio ao Paraná ao lado da mãe, em abril.
— O pessoal pergunta "qual o maior desafio de ficar dentro de casa?", e eu não sei. Cada dia é um desafio novo. Cada dia é um questionamento do que hoje está difícil, do que está menos complicado e, quando vejo, passou uma semana, um mês e já se passaram 10 meses — reflete.
Mãe e filha celebraram o Natal e vão comemorar o Reveillón em casa também. Lusivana aguarda a visita da irmã, que mora em Canoas e deverá manter distanciamento e uso de máscara durante todo o período. Visitas de outras parentes e amigos só voltarão a ser aceitas depois da imunização em massa.
Questionada sobre o que pensa das pessoas que não estão respeitando os protocolos para conter a disseminação do vírus, a funcionária pública confessa que prefere não pensar:
— Será que todas as pessoas que estão na rua precisam estar mesmo? Temos uma parcela de culpa da proporção que isso se tornou. Talvez, eu não precisasse estar tão isolada se outras pessoas fizessem a sua parte. Prefiro pensar que se eu pegar (covid-19), era porque era para eu pegar porque quase não saio e tenho tentado me cuidar.
"A curva precisa diminuir e a vacina tem que existir"
Vivendo entre Caxias do Sul, na Serra, e Nova Tramandaí, no Litoral Norte, a artesã Sandra e o designer Nilo Laschuk, de 71 e 73 anos, respectivamente, jamais haviam pensado em ficar meses numa única casa. O anúncio da pandemia e de que estavam num dos grupos de risco, porém, fez o casal repensar a própria vida.
Na primeira semana de março, os dois buscaram informações sobre o vírus e viram a situação na Itália. Naquele momento, optaram pelo isolamento.
— Quando percebemos que o perigo era grande, nos revestimos de medo quase que propositalmente. Deixamos de receber visitas e nos distanciamos até dos vizinhos. Até hoje, quando falamos com alguém mantemos a distância recomendada pelo protocolo — conta Nilo.
As compras semanais passaram a ser feitas via WhatsApp, no mercado próximo. E a principal saída do casal é feita de carro, uma vez por mês, nas manhãs de domingo, quando circulam por cerca de 10km na BR-116 "apenas para que a bateria do veículo siga funcionando".
— Mesmo que nós não fizéssemos parte do grupo de risco, manteríamos o procedimento — afirma o designer.
Nilo comenta que "colocar os pés na rua, de fato" só foi ocorrer em setembro, depois de acompanhar a redução das curvas de casos e óbitos na região. E ainda assim só saiu porque era uma revisão médica de rotina. Ele agendou a consulta para o primeiro horário, sem correr o risco de encontrar outras pessoas.
Embora estejam apreensivos com a situação da covid-19 no Brasil, o casal se considera privilegiado por morar numa casa e ter um espaço físico que lhes permite manter diferentes atividades todos os dias. Ambos garantem não ter sentido a necessidade de sair à rua sem motivo.
— Cozinho bastante, gosto de fazer experiências na cozinha. Também estou bordando. Não senti ainda a pressão de ficar em casa — comenta Sandra.
Nilo confidencia ter usado o tempo livre para desenvolver duas versões de um acordeão simplificado com peças disponíveis em casa, como a tela de uma cerca. O resultado ainda não pode ser divulgado, afirma faceiro o designer, porque os instrumentos continuam sendo desenvolvidos.
Distantes dos dois filhos, que moram em Porto Alegre e apoiam a decisão dos pais, Sandra e Nilo contam que as datas especiais são celebradas de forma online, jeito encontrado também para almoçarem em família e até tomarem um cafezinho na companhia dos filhos no meio da semana. Será desta forma a celebração do Réveillon —como também foi o Natal. Quando a saudade aperta, Sandra prefere imaginar que eles estão viajando.
Mas o casal lamenta não poder estar mais próximo das próprias mães, apesar da conversa diária com as duas por telefone. A de Sandra, Geny Stallivieri, tem 95 anos e mora com outra filha. A de Nilo, Tamara Laschuk, tem 97 anos e vive próxima de três filhos em Porto Alegre.
— Vimos reportagens de avós que não estão podendo ver os netos e estes exemplos foram importantes porque mostram que não somos os únicos a nos privarmos da família. As pessoas que desejam viver têm que tomar decisões deste tipo — afirma Nilo.
Na espera pela vacina, os dois encontraram na internet uma nova forma de viajar e conhecer outros países. Nas semanas mais recentes, visitaram a Holanda, a Bélgica e percorreram o rio Sena, na França. Entusiasmados, falam dos museus e das belas paisagens vistas pela tela do computador.
— Só vamos nos considerar liberados deste isolamento ou distanciamento depois que tivermos sido vacinados. Também tem a questão da curva, que pode nos trazer algum otimismo. Paralelamente, são duas situações que têm de acontecer: a curva precisa diminuir e a vacina tem que existir — finaliza Nilo, apoiado pela esposa.
"Dá para segurar a onda"
Determinado a permanecer o máximo de tempo possível sem ir à rua durante a pandemia, o desenvolvedor IOS Vinícius Chagas, 22 anos, de Porto Alegre, passou três meses dentro de casa. O trabalho em home office e os estudos a distância em ciências da computação, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), permitiram a ele cumprir a meta até junho, quando precisou sair para cortar os cabelos.
— Foi muito estranho! Era uma outra realidade. Me deu uma sensação de medo, de apreensão por saber de todos os riscos. Também tive um pouco de frustração ao ver pessoas na rua parecendo não estar nem aí para toda a situação — comenta o jovem.
Além do próprio temor de contrair a covid-19, Vinícius ressalta que a decisão de manter-se em distanciamento social foi motivada por morar com a mãe e o padrasto. Afinal, não quer ser o vetor da doença para ambos:
— Não vou mentir, tenho vontade de sair. Mas o medo e a precaução vencem. Não posso fechar os olhos para o contexto em que estou inserido. Seguirei do jeito que estou, pois está tranquilo e todo mundo saudável. É isso que importa.
Ao longo de dez meses de pandemia, o jovem saiu três vezes para cortar os cabelos, em junho, agosto e novembro, e outras três para resolver questões urgentes. Em todas, usou carro acionado via aplicativo, algo impensável para Vinícius antes da covid-19 porque costumava circular de ônibus pela cidade. A opção por outro meio de transporte também é uma forma de continuar distante das pessoas.
Apesar de se considerar caseiro, o universitário gosta de frequentar bares e sair para jantar com amigos nos finais de semana. Ele ressalta que, ao menos, antes da pandemia, tinha a opção de sair ou ficar em casa.
— A maior parte do meu círculo social é bem consciente e se mantém em distanciamento. Já me convidaram para ir à casa de um amigo, com poucas pessoas. Mas ainda não me sinto 100% confortável com a situação. Prefiro deixar para quando tudo melhorar. E vai melhorar — conta, confiante.
Vinícius revela que os próprios pais o incentivam a, pelo menos, dar uma volta na rua, sugestão negada por ele, que prefere o sol que entra pela sacada do apartamento.
Apesar da situação incomum e de confessar sentir muita falta de convívio social, Vinícius tem aproveitado o período para ampliar a própria criatividade. Dedicou-se, por exemplo, a produzir músicas novas para a banda Dutra, de rock alternativo, da qual faz parte. Também pode estudar no horário preferido, no período da noite, ao contrário de quando as aulas eram presenciais e ocorriam pela manhã.
— Às vezes, o pessoal pergunta "como é que tu não tá enlouquecendo?". Eu estou enlouquecendo, sabe. Mas eu estaria bem mais, se eu visse quem eu amo numa UTI. Dá para segurar a onda. Ninguém vai morrer por deixar de ir a um restaurante ou uma balada por mais alguns meses. Lógico que a nossa saúde mental está fragilizada no momento, mas é melhor fazer este sacrifício agora do que se ferrar mais adiante — justifica.
Sobre as datas especiais neste final de ano e a expectativa pela vacina em 2021, o jovem é enfático:
— Não quero ter expectativas para não me decepcionar mais adiante. Meu 2020 vai durar mais alguns meses porque ele só terminará quando chegar a vacina e as pessoas aderirem à imunização.