As agressões de seguranças que levaram à morte de João Alberto Freitas, 40 anos, no Carrefour do bairro Passo d'Areia, em Porto Alegre, na quinta-feira (19), deram vazão a desabafos de pessoas negras sobre situações de racismo que costumam ocorrer em lojas e supermercados. Na sexta-feira (20), em artigo publicado em GZH, a socióloga Nina Fola diz que "não tem preta ou preto que não viveu uma perseguição dentro de um supermercado".
No sábado (21), mais um caso desse tipo foi divulgado. Fernando Silva dos Santos, um homem negro, havia recebido o salário e foi a uma loja no calçadão de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, na quarta-feira (18) para comprar uma mochila. Segundo o jornal O Globo, ao deixar o estabelecimento, já usando a mochila, foi acusado de ter roubado um par de sapatos. Ele mostrou a nota fiscal do produto. Mesmo assim, precisou esvaziar a mochila para revista e nada foi encontrado. Santos registrou boletim de ocorrência, classificada como "constrangimento ilegal".
GZH ouviu relatos sobre abordagens de seguranças e situações de constrangimento em lojas e supermercados. Consumidores negros dizem adotar estratégias de comportamento que buscam explicitar que não cometeram qualquer crime, para evitar as suspeitas dos seguranças. Evitam, por exemplo, abrir mochilas e bolsas perto de prateleiras ou guardar notas fiscais.
As experiências constrangedoras vêm desde a infância. O músico Leonardo Almeida, 29 anos, conta que, aos 12 anos, ele e o irmão Bruno, que na época tinha 10, foram abordados pelo segurança de um supermercado. Mensalmente, eles acompanhavam os pais no mercado e gostavam de ficar na parte dos brinquedos. O momento lúdico foi esfacelado quando um segurança os puxou pelo braço e perguntou o que faziam ali.
— Falei que estávamos com nossos pais. Ele disse que era mentira e que nos chutaria na porta do supermercado. Nisso, éramos escoltados para a porta de saída, mas, nesse trajeto, vimos nossos pais e saímos correndo em direção a eles. Ficamos muito assustados, nunca havíamos passado por aquilo. Depois desse episódio, nossos pais tiveram a indesejável conversa sobre racismo com a gente, quando ainda éramos duas crianças — relembra o músico.
A consultora financeira Dina Prates, 28 anos, diz que histórias de perseguição em supermercados são as que mais viveu. Quando estava na faculdade, ela trabalhava na realização de pesquisas de preços no comércio. Apesar de sempre avisar a gerência e a segurança sobre o que iria fazer e de se identificar na entrada, as situações de constrangimento e racismo eram frequentes.
— Às vezes, um segurança não comunicava ao outro que eu estava trabalhando. Aí, eu ficava durante as duas horas de pesquisa de preços sendo vigiada de perto. Era muito exaustivo, eu só estava trabalhando! No inverno, a perseguição era e é pior, porque os seguranças sempre acham que estou com algo debaixo do casaco — afirma ela.
Em razão disso, Dina procura não fazer movimentos bruscos dentro de lojas, não abre a mochila perto das prateleiras e anda com o celular sempre na mão. Além disso, procura ser o mais objetiva possível no momento das compras.
Outra situação que marcou Dina foi a vivida com o ex-namorado, que também é negro. Ambos estavam no supermercado e um segurança os acompanhava durante as compras. A jovem relata que, enquanto a marcação em cima deles era forte, uma jovem branca, com a qual eles cruzaram pelos corredores, roubou alguns itens.
— Perguntei ao segurança por que ele estava atrás da gente e não daquela guria que estava roubando. Ouvi que era orientação. A orientação desses locais é perseguir pessoas pretas? É uma situação muito perturbadora, ainda mais que o segurança que fez isso também era negro e sei que, quando ele tirar aquela farda e entrar em outro supermercado desta mesma rede, ele é que será seguido — descreve.
Situações de racismo fazem parte da vida do estudante de Jornalismo Ariel Freitas, 24 anos, desde a infância. A primeira recordação é de uma situação aos nove anos. O instrutor de futebol de uma colônia de férias no litoral gaúcho selecionava os meninos que formariam a equipe e usou um argumento racista para não convocar o Ariel.
— “Tu não, porque tu és feio”. Isso foi o que ele me disse. Eu tinha nove anos e ele me disse isso, sem nem cogitar o impacto que isso poderia vir a ter na minha autoestima. Depois, vieram as perseguições em lojas e mercados. Mudei meu modo de ver o mundo e de me comportar. Nunca fiz nada de errado, mas ando sempre procurando demonstrar minha inocência. Me coloco em uma posição de fragilidade para não assustar ninguém.
Recentemente, Ariel estava com amigos, também negros, em um mercado do Litoral Norte quando foi seguido durante todo o período em que permaneceu no estabelecimento.
— A perseguição era tanta que comecei a gravar ele me perseguindo. Até brinquei que tinha um segurança particular. Quando ele percebeu que havia sido gravado, parou — conta o estudante.
Contexto social e histórico
Luana Pereira, advogada no P&MR Advocacia, especialista em direito antidiscriminatório e mestra em Sociologia, explica como o processo decisório de quem é digno de suspeita se estrutura:
— Homens e mulheres negros não são vistos como humanos e, para a população em geral, estamos sempre à beira de cometer um crime. Isso se converte em maior criminalização, na seletividade e na hipervigilância. Há de se notar ainda que a presença dos vieses inconscientes em nosso modo de pensar. Quando uma decisão precisa ser tomada rapidamente, não há tempo para raciocínio mais elaborado. Então, a decisão é firmada no estereótipo, na discriminação e no racismo que constitui a nossa sociedade. Acrescenta-se a isso que há uma truculência e agressividade muito maior quando o caso envolve pessoas negras.
Para Dedy Ricardo, professora e doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a abordagem truculenta a pessoas negras é fruto de um sistema de opressão que existe há séculos no Brasil:
— Por muito tempo, a teledramaturgia também colocou diante das pessoas uma imagem corrompida dos negros, de periculosidade e hipersexualizada. Imagem de assassinos, facínoras, ladrões e esses signos, que foram cultivados no imaginário social brasileiro, faz com que a população olhe com desconfiança para pessoas negras.
Na avaliação de Dedy, a educação é uma das principais rotas para combater o racismo:
— A lei 10.639 (que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira) é uma possibilidade de abordarmos outros tipos de representação de negros e mostrar, para as crianças e os adolescentes, as pessoas negras como produtoras de conhecimento, em posição de visibilidade e de tomada de decisão política. Esse regramento é de 2003. Temos mais de 400 anos de construção de estereótipos negativos sobre a população negra e somente 17 de pessoas tentando desconstruir essa imagem e atuando na promoção de imagens positivas sobre nós.
Para Luana, a discriminação direta é somente a ponta do iceberg:
— Vivemos uma onda negacionista em diversos aspectos. Como resultado disso, as pessoas tendem a acreditar que racismo é algo importado, que a discriminação de verdade aconteceu somente na África do Sul e nos EUA. Mas basta olhar para os dados socioeconômicos do Brasil para ver que vivemos um apartheid. Os negros passam mais tempo desempregados, ficam menos tempo na escola, têm menos acesso a serviços públicos básicos. As pessoas e as autoridades precisam se sensibilizar para essas outras manifestações de racismo, para além da palavra e da agressão direta.