O termo cancelamento, nascido na era das redes sociais, descreve um indivíduo, marca ou empresa boicotado depois de agir de forma censurável – em geral, costumam ser erros que envolvem racismo, LGBTfobia ou machismo.
É um tipo de ataque à reputação que busca retirar o alvo dos holofotes do debate público e puni-lo. Todos os dias, em processo semelhante, cancela-se alguém flagrado em absurdo. O vacilo é compartilhado milhares de vezes – em geral, no Twitter –, mensagens de ódio são enviadas, e o cancelado, já humilhado, sofre consequências financeiras, com perda de contratos e patrocínios. Há diversos casos de cancelamento de famosos ocorridos nos últimos anos, no Brasil e em outros países.
Na entrevista a seguir, o psicanalista, escritor e professor de Psicologia na Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker faz uma análise do fenômeno e explica o que está por trás da sensação de cancelar alguém.
Você escreve que há um prazer em cancelar. Que prazer é esse?
É um prazer que precisa ser lido como percurso. Em primeiro lugar, é preciso criar uma relação com aquela personalidade que te expressa e representa. Isso demanda investimento. Quando você cancela e retira seu apoio, estabelece uma espécie de saque, como se sacasse dinheiro do banco. Mas, em vez de dinheiro, retira capital cultural depositado nessa pessoa. Isso produz a ilusão de que algo voltou para você, algo próprio de uma sociedade de culpa.
Nossa sociedade tem muita culpa?
Um segundo componente do prazer é a ideia de punição, uma relação básica de nossa época, junto com a inadequação. As coisas estão sempre além da nossa alçada, então a gente confunde culpa com responsabilidade. E esse sentimento é acalmado quando você imagina que pune alguém. Temos de pensar que as redes sociais produzem a sensação de que todos estão muito felizes e você, não. Isso levanta uma pergunta: por que eu não, o que fiz de errado? No universo neoliberal de trabalho, isso traz a ideia de que você está sempre devendo, e a culpa acompanha. E há a ideia de autoaperfeiçoamento, de que devemos melhorar e progredir, mas que se transforma em insuficiência e irrelevância, porque as pessoas começam a achar que contam pouco quando comparadas com outras vidas.
Culpamos o outro para expiar nossa culpa?
A ideia de que alguém tenha opiniões contraditórias ou mesmo que mude de opinião e se desculpe frequentemente não interrompe o cancelamento. Isso é um traço de que eu quero purificar, não melhorar o outro.
Exatamente. Punimos o outro porque ele fica muito parecido com a parte insuficiente de nós. A gente pune para criar um sentimento ilusório de purificação da alma. Não fui eu, foi ele, eu nunca faria isso, nem os meus, e por isso cancelo. Esta pessoa, não vou dizer que quero corrigi-la e debater com ela para nos mantermos juntos, porque isso implicaria se responsabilizar. A ideia do afastamento que vem junto com o cancelamento diz que o outro não deveria existir mais no espaço simbólico. Isso tem uma relação com a forma como aquela pessoa lida com suas vozes inadequadas e infelizes: ela gostaria que essas vozes saíssem. E há também um processo de fortalecimento de bolhas, no sentido de agrupamentos crescentemente incapazes de conviver com contradições e diferenças. A ideia de que alguém tenha opiniões contraditórias ou mesmo que mude de opinião e se desculpe frequentemente não interrompe o cancelamento. Isso é um traço de que eu quero purificar, não melhorar o outro.
Cancelar é um novo jeito de participar politicamente da sociedade?
É um gesto de uma sociedade que aprende uma nova linguagem, um gesto de resistência um pouco atrapalhada para uma nova época em que sentimos dificuldade em organizar críticas. Em parte, isso acontece pela carência de marcos regulatórios e jurídicos da conversa na internet.
É um gesto de uma sociedade que aprende uma nova linguagem, um gesto de resistência um pouco atrapalhada para uma nova época em que sentimos dificuldade em organizar críticas. Em parte, isso acontece pela carência de marcos regulatórios e jurídicos da conversa na internet. Há pouca mediação, então a mediação vem de uma forma brutalizada. Eu também acrescentaria que há uma dimensão política nos cancelamentos. Quem ganha ao cancelar a Lilia Schwarcz? Plutarco enfatizava a importância da escolha dos amigos e dos inimigos. E Cazuza dizia: “Sou eu quem escolho e faço meus inimigos”. O que eu diria é: você está à altura de Cazuza? Você escolhe seus inimigos ou alguém escolhe por você?