Nenhum setor deve escapar às consequências da pandemia do coronavírus, mas pelo menos um poderá sair com um horizonte maior do que entrou no período de distanciamento social. Com o atendimento presencial suspenso em diversos locais em razão do risco de contágio, bares e restaurantes ampliaram a oferta de produtos e serviços, antecipando tendências da gastronomia que podem se consolidar quando tudo passar.
Conheça algumas iniciativas:
Refeições de chef a vácuo
Era para ser um quebra-galho. Sem ter como realizar um jantar beneficente anual onde serviam nhoque, os proprietários da Mule Bule Gastronomia, que trabalha com grandes eventos, apostaram na tecnologia para uma edição remota. Empacotaram os nhoques e molhos com uma técnica de embalagem a vácuo e enviaram para a casa dos clientes com orientações de preparo: submergir os pacotes em água quente por cinco minutos. A repercussão indicou que a ideia tinha potencial mais.
— Tivemos milhares de menções no Instagram. As pessoas gostaram tanto que criamos um cardápio. Pela receptividade que está tendo, é um filho da pandemia que vai crescer forte e nos dar bons frutos — projeta o sócio-diretor Nelson Ramalho.
O filho pandêmico foi batizado de acordo com o espírito embutido nele: Be a chef (Seja um chef). Nesse caso, o toque do cliente se restringe à apresentação, já que as receitas passam pelo processo de cocção e resfriamento antes de serem embaladas, e, depois do banho maria, podem sair das embalagens diretamente para o prato.
O método sous-vide, técnica francesa de embalagem a vácuo, permite preservar o sabor e as propriedades nutricionais dos alimentos por mais tempo. Seu uso praticamente elimina uma das maiores preocupações dos chefs em relação ao delivery, que dificilmente costuma entregar os produtos com a mesma cara que saíram do restaurante.
Em pouco mais de um mês de operação, o Be a chef já disponibiliza cerca de 20 opções de pratos sob encomenda. O mais popular, segundo Ramalho, é a costela prensada ao molho roti com mousseline de batata doce e farofa crocante. Há ainda receitas preparadas para pessoas com dietas restritivas, como intolerantes a glúten e lactose.
Happy hour em casa com jeito de bar
Mal fazia um ano que o Capincho Bar tinha inaugurado no Quarto Distrito quando o chef Marcelo Schambeck precisou fechar as portas por conta das restrições de circulação. Sem perspectiva de retorno, montou um cardápio específico com refeições por encomenda, vinhos e parte dos drinks do bar. Mas logo percebeu que apenas disponibilizar os produtos estava aquém de um dos principais valores da casa, que é a relação de proximidade entre sócios e frequentadores.
— No Capincho, sempre tem algum dos três (Schambeck, Flavia Mu e Fred Müller) circulando, conversando com as pessoas. A falta da experiência do balcão fez com que a gente quisesse levar um pouco do bar pra casa do cliente. Não queremos que se perca — conta o chef.
Há cerca de um mês, Schambeck tornou-se também curador de experiências. Toda semana, escolhe três drinks diferentes, embalados a vácuo, e os acomoda em uma caixinha acompanhados do copo adequado para a degustação. O cliente que compra o “sextou”, como o kit foi apelidado pelos sócios, leva ainda dicas de como consumir, qual o tipo de gelo usar ou quanto tempo a bebida deve ficar na geladeira. Outro combo leva um vinho selecionado por Flavia acompanhado de petiscos, para um happy hour em casa.
— Está sendo bem legal. Alguns clientes já repetiram, estão comprando a ideia de montar seu bar, ter os copos em casa. O simples fato de abrir uma caixa, da surpresa, torna a coisa interessante — comemora.
Além dos kits, entregues às sextas-feiras, mantiveram diversas opções de refeições estilo “comfort food”, como estrogonofe e sopa de capeletti, algumas delas para serem finalizadas em casa. As encomendas são feitas por WhatsApp e a retirada ocorre no domingo, no bar. O formato abriu uma oportunidade a mais: nesse dia, é montado um empório no local, e as pessoas podem levar para casa produtos usados nos preparos da casa.
Quentinhas gourmet com embalagem retornável
Foi no passado que o chef Marcos Livi buscou inspiração para projetar o que acredita que deve integrar em definitivo o futuro do Parador Hampel, em São Francisco de Paula. Durante o distanciamento social, quem pede comida do seu restaurante recebe em casa uma marmiteira de aço inox com cara de vintage, embrulhada em um pano de prato.
— Me inspirei no hábito dos colonos, que levavam a comida pro meio da roça. Lembrei da minha vó embrulhando comida pro meu avô — diz.
Mais do que eliminar as embalagens plásticas, pouco sustentáveis, e proporcionar aconchego — os oito pratos do cardápio lembram comida de vó, como o arroz de costela —, a iniciativa tinha um objetivo além. Através da embalagem retornável, fazer-se lembrar, fidelizando a clientela.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Para evitar desperdício de comida, o chef valorizou pratos com ingredientes locais e sazonais, alguns colhidos na horta do próprio restaurante. As receitas escolhidas foram pensadas especialmente para viagem, de forma a garantir que cheguem na casa do cliente em perfeitas condições.
A boa aceitação do público, que tem garantido o funcionamento do local durante o distanciamento, deve assegurar vida longa às marmitas charmosas:
— A gente está testando o que a gente acredita que vai ser o amanhã. Todo mundo diz que vai migrar muita gente do presencial pro delivery, mas acho que é diferente. Pessoas que não usavam o delivery vão usar mais essa opção.
E-commerce vende insumos usados no bar
Palco de algumas das aglomerações mais famosas do Centro Histórico, a escadaria da Borges foi um dos primeiros locais a se esvaziarem com a chegada da pandemia. Um dos estabelecimentos do trecho, o Justo Bar vestiu a camiseta do distanciamento e parou de funcionar assim que a situação se agravou.
O período fechado serviu acelerar um processo que já povoava os planos de expansão do negócio. Agora o Justo conta com uma loja virtual onde comercializa produtos feitos na casa, como os pães, pizzas, cervejas e drinks, e alguns dos insumos usados no preparo dos pratos, como a farinha, o café, as geleias e o creme fermentado. Também foram criados kits de café da manhã, lanche da tarde e festa junina.
— Antes da pandemia a gente estava num crescimento, mas sabia que, para continuar crescendo, ia ter que inventar outra coisa. Acabou que a pandemia nos disse, nos mostrou onde a gente podia expandir — conta o proprietário, Adelino Bilhalva.
A política de preço justo que dá nome ao local foi mantida na operação virtual — os valores são iguais aos do bar, e há opção para retirar sem custo —, assim como a política de democratizar a boa comida. Quem compra a farinha, por exemplo, recebe um pedaço do fermento natural usado na casa e a receita para preparar o pão em casa, se assim desejar.
Para abastecer o mercadinho online, a parte térrea do bar foi transformada em linha de produção e depósito. A ideia é manter a operação quando o atendimento presencial voltar, deixando o público do lado de fora (onde a maior parte dos clientes já costumava ficar) e no primeiro andar:
— Estou buscando licença para colocar uns toldos. A gente não pretende parar (com o e-commerce), porque está legal, e já superou a tele-entrega. Hoje a gente tem uma loja 24 horas, que entrega no Brasil inteiro e pode vender, inclusive, quando estamos fechados.
Embalagens sustentáveis no delivery
Trabalhar com delivery dos pratos do mais gourmet de seus restaurantes já estava no horizonte do Grupo Press Gastronomia e Diversão quando a pandemia chegou. As restrições à circulação anteciparam a chegada do Bah aos menus de aplicativos de entrega, mas não sem antes despertar nas proprietárias uma preocupação.
— Uma das coisas que sempre causou arrepio no delivery foi a quantidade de lixo que produz — relata Carla Tellini, CEO e head de criação do Grupo Press.
Para lidar com o problema, o restaurante apostou em uma alternativa biodegradável, que leva menos tempo para se decompor. O mesmo material é utilizado nas entregas dos sete estabelecimentos do grupo, a maioria deles com o delivery impulsionado pela quarentena.
Famoso por trabalhar com releituras requintadas de pratos da culinária gaúcha, o Bah focou nos sucessos para estrear no mundo dos apps. O cardápio traz os clássicos da casa, como a costela com feijão mexido e farofa de erva-mate, que está entre os preferidos dos clientes.
Com a operação consolidada, o grupo trabalha, agora, em um portal que deve reunir todas as marcas — uma delas, de PFs, criada durante a pandemia —, com entrega própria.
— Não é comum encontrar online pratos de restaurante (gourmet). O delivery é uma coisa mundial, mas aqui no Brasil que estávamos para trás, focados em pizza e burger. Para nós, veio pra ficar — diz Carla.