Por Carlos Ferreira
Diretor e roteirista de curtas-metragens como “Bacantes” (2019) e de HQs como “Kardec”
Até o fim do século 18, o Rio Grande do Sul era habitado por povos indígenas. Mas foi chamado de “terra de ninguém” pelos espanhóis que invadiram os pampas e se tornaram proprietários legais, criando um dos maiores genocídios da história da humanidade com a dizimação dos índios. Depois, no século 19, quando Portugal teve a posse definitiva do Estado, os massacres dos índios ainda eram uma realidade. Homens, mulheres e crianças torturados, estuprados, carbonizados em Caiboaté. Morreram mais de 1,5 mil guaranis nas Missões Jesuíticas por lanças, espadas, degolas e canhões.
A participação do Estado, com os escravizados para as charqueadas, gerou rios de sangue. A produção do charque era um trabalho pesado e prolongado. Os trabalhadores viviam na senzala ou no barracão pulguento dos enfermos. Recompunham-se minimamente até que o capataz viesse acabar com sua “malandrice”.
A Revolução Farroupilha é outro incidente de proporções perversas considerado um ato heroico na história do Rio Grande do Sul, porém, um acontecimento de horror e tirania com o massacre dos Lanceiros Negros. Na Batalha de Porongos, ocorrida quando as negociações de paz já estavam em curso, os lanceiros se distribuíam m oito companhias de 51 homens cada, totalizando 426 pessoas. Todos foram traídos e massacrados em uma emboscada fomentada pelos dois lados do conflito.
Em 1864, em Porto Alegre, eram produzidas as famosas linguiças humanas consumidas pela elite local. A polícia da cidade deparou com uma cena de crime horripilante: no porão da casa de José Ramos e Catarina Palse, as vítimas estavam degoladas, esquartejadas e descarnadas. Eram transformadas na linguiça vendida no açougue que ficava na Rua da Ponte (atual Riachuelo) e que era bem aceita no comércio pela alta burguesia.
Revolução Federalista, a “guerra das degolas”: ocorrida de 1893 a agosto de 1895, foi a mais séria das contestações que a República brasileira, proclamada em 1889, enfrentou. A guerra chegou a Santa Catarina, em novembro de 1893, e ao Paraná, em janeiro de 1894. Além disso, uniu-se aos rebeldes da Revolta da Armada no Rio de Janeiro, colocando em risco a sobrevivência da jovem República brasileira. De um lado, estavam os republicanos históricos, adeptos do positivismo, membros do Partido Republicano Rio-grandense (PRR); no outro, os chamados liberais, que a partir de março de 1892 fundaram o Partido Federalista Brasileiro (PFB). A “guerra das degolas” durou 31 meses e deixou entre 10 mil e 12 mil mortos numa população de quase 1 milhão de habitantes, além de uma série de atrocidades nos campos de batalha. Foi a mais sangrenta guerra civil que assolou o Brasil republicano até hoje.
Em episódios como a live do filme 'Inverno', promovida pela APTC-RS, são debatidos os sobrenomes da aristocracia 'colonieuro', mas as riquezas materiais acumuladas pela sociedade 'culta' gaúcha o foram à base de ganância, massacres e crimes engajados à maior pobreza de muitos.
Na exportação das degolas para o conflito de Canudos, um novo marco na trama da maldade. Soldados dos pampas formaram uma especial tática na quarta expedição do governo republicano, após os canudenses imporem a este três humilhantes derrotas. Os gaúchos chamaram a atenção tanto por suas vestimentas exóticas quanto pela violência na tradição de barbárie das recentes guerras ocorridas no Sul.
Para mim, outro momento crucial da perversidade gaúcha: à morte de Lampião, de seu bando e de sua companheira Maria Bonita, derivaram-se suas cabeças, cortadas e expostas, como exemplo à população, durante o governo do presidente gaúcho Getúlio Vargas.
Depois veio a ditadura militar pós-1964, que no Rio Grande do Sul teve torturas, desaparecimentos e mortes. Criou-se uma rede, com 39 locais em Porto Alegre, onde pessoas eram presas e torturadas, desde o “primeiro soco” (interrogatório preliminar) até as confissões à base de choques elétricos e espancamentos. O maior centro perverso foi o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no Palácio da Polícia da capital gaúcha.
Talvez, de lá para cá, os espinhos dessa trama tenham se expandido na educação e no sistema de cárcere, duas áreas sincronizadas perversamente pelo sucateamento a que são submetidas. Atualmente, em episódios como a live do filme Inverno, promovida pela Associação dos Profissionais e Técnicos Cinematográficos (APTC-RS), são debatidos os sobrenomes da aristocracia “colonieuro”, mas as riquezas materiais acumuladas pela sociedade “culta” gaúcha o foram à base de ganância, massacres e crimes engajados à maior pobreza de muitos. Também transmigrou a perversidade para as redes sociais, onde o mal se manifesta em forma de agressividade e absurdos diversos. A guerra do dedo no olho segue com alienação, abusos, machismo, feminicídio, racismo e hipocrisia. Talvez o amor precise ser reconfigurado. Precisamos do perdão, da cura, do renascimento. Estamos doentes de tanta perversidade.