A principal atração do Cerro do Jarau, em Quaraí, no oeste do Estado, é a furna por onde seria possível, segundo a lenda, chegar até a moura encantada. Localizada em uma encosta, perto do cume de um dos morros mais altos do conjunto, trata-se de uma gruta de pouca profundidade, com uma fenda comprida e estreita no fundo, abrindo-se para a escuridão das entranhas do morro.
Apesar da fama, não é um lugar muito visitado. Quem tem tentado mudar isso é a empresária do turismo Kátia Lagreca Schmidt, 52 anos, que oferece passeios agendados no local. Kátia e o marido, Guilherme Casapina Schmidt, 53 anos, são donos da Estância Santa Rita do Jarau, que abrange uma parte do cerro. Ela fez parceria com outros proprietários para franquear o acesso de turistas. A própria Kátia serve de guia, conduzindo os visitantes por estradas de chão, cruzando sangas e escalando encostas pelas trilhas mais acessíveis, até o topo dos morros, de onde se descortina o panorama em 360º das vastas planícies.
— Somos do Alegrete. Antes de vir morar na estância, uns 15 anos atrás, eu não tinha a menor ideia sobre o cerro. Quando cheguei, achei lindíssimo, me apaixonei pela paisagem e comecei a saber mais da história — conta Kátia.
Em dezembro, a empresária e o marido percorreram o local com a equipe de GaúchaZH, acompanhados da professora de história Ana Fritz da Silva, 41 anos, e do professor de geografia Jader Vilaverde Carvalho, 30 anos, que chamou a atenção para a vegetação peculiar existente na pedregosa zona do cerro.
— É uma vegetação típica de zona de agreste, de pouca precipitação e solo bastante duro. Algumas dessas plantas são xerófitas, que conseguem se adaptar ao clima seco. São plantas diferentes das que encontramos na região — observou.
Em um conjunto de notas que acompanham a lenda da Salamanca, João Simões Lopes Neto afirma que "o célebre caudilho Bento Manuel deveu a sua sorte guerreira, política e de fortuna ao conchavo que ajustou na salamanca do Jarau". Dono de vastas terras que incluíam toda a zona, sesmarias obtidas pelos serviços prestados ao Império, Bento Manuel Ribeiro (1783-1835) tornou-se célebre por trocar de lado várias vezes durante a Revolução Farroupilha. Por ter sido "embruxado" pela teiniaguá, dizia-se, escapou ileso das incontáveis batalhas e morreu de velhice.
Na recente incursão pelo local, Kátia Lagreca percorreu os matagais do sopé do cerro em busca das ruínas da estância de Bento Manuel, que não visitava havia anos. O que se conta é que, nos momentos de perigo, o general deixava sua casa no Alegrete e se refugiava na estância, que, protegida pelos morros, oferecia condições ideais para a defesa.
— A estância era um forte, bem protegido. Ele mantinha vigilantes no alto do morro, que ficavam de sentinela, para que ele não fosse atacado na calada da noite ou sem estar preparado — explicou a professora Ana Fritz da Silva.
Depois de alguma procura, dificultada pelo mato fechado, os sinais da antiga estância apareceram: um resto de alicerce, um pedaço de parede e grossos muros de pedra, que se estendiam em linha reta por 15 ou 20 metros, com extensões perpendiculares mais curtas saindo das duas extremidades. Em uma seção do muro, um figueira cresceu. Ela levantou as pedras, que ficaram amalgamadas no tronco.
Por ali, Guilherme viu algo rebrilhar no chão e abaixou-se para pegar. Era a parte inferior de uma garrafa, de vidro fosco e espesso, com um acabamento algo rudimentar.
— Acho que é de vinho, de repente do tempo do Bento Manuel — especulou o proprietário rural.
Não é impossível. Na base da garrafa, podia-se ler a inscrição CW&Co, que uma pesquisa posterior na internet indicou tratar-se de uma fábrica norte-americana ativa no século 19, cujas garrafas chegam a valer centenas de dólares hoje em dia.
Ruínas da estância
Cerca de 2 mil objetos foram encontrados nas ruínas por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Um dos participantes do projeto, para um mestrado defendido em 2001 na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), foi o arqueólogo Flamarion Freire da Fontoura Gomes, 45 anos. Ele observa que a estância é um dos sítios arqueológicos mais extensos do Estado, com 33 hectares de área construída, às vezes subindo morro acima.
Esse complexo, de arquitetura rústica e espaços sombrios, era composto por residência, galpões, mangueiras, currais, cacimba e cemitério. Muito distante de qualquer outra povoação, precisava ser um núcleo autônomo, daí a existência de espaços para produção de farinha, de velas e de sabão.
Uma das constatações que chamaram sua atenção foi o caráter de fortaleza da estância, inclusive com prejuízo para a atividade econômica principal, a pecuária. O solo repleto de afloramentos pedregosos, herança do impacto do meteoro, não é adequado para a pastagem.
A escolha do local, portanto, teria motivação estratégica.
— Era um local isolado, a ponta da fronteira, com toda uma estrutura militar e preocupações com a defesa. Ficava no pé do cerro justamente por proteção e para permitir visualizar a distância qualquer movimentação de alguém chegando. Se fosse avistado algum inimigo, dava para tentar fugir com o gado, que era a principal riqueza. Também havia mangueirões muito altos, de pedra, que não faziam sentido para gado. Era mais um quartel do que uma moradia, ainda que houvesse uma família ali — afirma Flamarion.
As ruínas do Cerro do Jarau revelaram muito mais do que isso, descortinando informações sobre a sociedade e o cotidiano gaúchos que, em vários aspectos, estão em contradição com crenças arraigadas a respeito de nosso passado.
— Fomos atrás do que as ruínas podiam nos informar a respeito do período, porque um dos problemas da história do Rio Grande do Sul é que ela acaba sendo recontada de uma maneira nostálgica, construída dentro de uma visão muito romântica. Havia, por exemplo, a ideia do gaúcho como um biotipo único, independentemente da posição de patrão ou de peão. E o que nós concluímos é que havia toda uma multiplicidade de gentes que viviam ali — observa o arqueólogo.
No cemitério, por exemplo, foram encontrados muitos sobrenomes espanhóis, evidenciando a presença castelhana. Os registros também apontaram uma presença maciça de negros – famílias inteiras de escravos vindas de diferentes partes da África –, em geral pouco lembrada na Fronteira Oeste. E, claro, havia muitos índios na estância, com uma particularidade:
— Havia indígenas que, na documentação, se declaravam como escravos. Por exemplo: alguém se apresentava como "José, índio guarani e escravo". Isso é uma coisa que a gente nunca viu na história do Rio Grande do Sul — revela Flamarion.
O arqueólogo também detectou o papel central das mulheres. Quando espocavam os conflitos – o que era quase sempre –, os peões viravam soldados e partiam para os campos de batalha. A estância ficava inteiramente em mãos femininas, que tomavam conta das atividades econômicas.
Como registra Simões Lopes Neto nas linhas finais da lenda da salamanca, até mesmo Anhangá-Pitã, o diabo-vermelho, incorreu em erro por não tomar "tenência de que a teiniaguá", a guardiã dos tesouros do Jarau, "era mulher".