Por suas características únicas no cenário pampiano, é natural que o Cerro do Jarau, em Quaraí, no oeste do Estado, ganhasse uma aura mítica. Assim, no imaginário local, acabou fundindo-se com tradições indígenas e antigas histórias ibéricas sobre mouras encantadas para dar origem à famosa lenda da Salamanca do Jarau, esteio da cultura rio-grandense. No século 19, essa lenda foi recolhida em livro por pesquisadores do folclore platino e inspirou João Simões Lopes Neto (1865-1916) a compor uma versão reestilizada, publicada no clássico Lendas do Sul (1913).
É essa versão, na qual o autor pelotense inseriu o personagem Blau Nunes, que ficou consagrada.
O conto trata de uma linda princesa moura da cidade espanhola de Salamanca que, transformada em "fada velha", fugiu para o outro lado do oceano. Nos pampas, foi transformada por Anhangá-Pitã, diabo vermelho dos indígenas, na teiniaguá – uma lagartixa com uma pedra cintilante no lugar da cabeça. "Aqui está tudo que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros que, esses, viram", relata Blau Nunes.
A lenda envolve também um sacristão da cidade de São Tomé, nas missões jesuíticas, que um dia encontrou a lagartixa e capturou-a, sabendo que "quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo". Ele passou a cuidar da princesa encantada, alimentando-a com mel de lexiguana. No quarto trancado do sacristão, a lagartixa virou gente. "Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça! (...) Cada noite era meu ninho o regaço da moura", rememora ele, muito depois, num encontro com Blau Nunes diante do Cerro do Jarau.
Um dia, o sacristão roubou o vinho da missa e embebedou-se com a princesa. Quando acordou, estava cercado pelos padres jesuítas. "Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira", relata.
Na hora da execução, com os urubus já fazendo baixo a sua contradança, apareceu a teiniaguá, "fogachando luminosa como nunca", e resgatou o sacristão, levando para o Jarau. No cerro, por duzentos anos, o sacristão serviu de guardião junto a uma furna, sem comer ou dormir, vítima de um encantamento. Lá dentro do morro, em um palácio maravilhoso, repleto de tesouros, vivia a teiniaguá.
Instado pelo sacristão a quebrar o feitiço, Blau entra pela furna, "a boca da toca", e avança para dentro do cerro. Vence sete provas, até encontrar "uma velha, muito velha, carquincha e curvada", que pela proeza permite-lhe escolher entre as maiores riquezas e poderes. Ele recusa tudo e diz à velha:
— Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim...
Uma escuridão caiu e Blau Nunes viu-se de novo do lado de fora do Jarau. Quis entrar de novo pela furna, "mas bateu coo peito na parede dura do cerro". Já não havia "fresta, nem brecha, nem buraco". Apareceu-lhe o sacristão, com um presente, uma moeda furada mágica, que gerava moedas infinitas, mas só uma de cada vez.
A onça de ouro fez de Blau um homem rico, mas não feliz. Ele voltou ao cerro para devolvê-la ao sacristão. "Neste mesmo momento ouviu-se um imenso estouro, que retumbou naquelas vinte léguas em redor; o Cerro do Jarau tremeu de alto a baixo, até as suas raízes, nas profundas da terra, e logo, em cima, no chapéu do espigão, apareceu, cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se, uma língua de fogo, alta como um pinheiro, apagou-se e começou a sair fumaça negra, em rolos grandes (...). Era a queima dos tesouros da salamanca." Blau viu a velha transformar-se em teiniaguá e a teiniaguá em princesa. De mãos dadas, ela afastou em "viagem de alegria" com o sacristão. O encantamento estava desfeito. "Assim acabou a salamanca do Cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos, que tantos se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas principiaram", conclui Lopes Neto.
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