Por Nilton Mullet Pereira
Professor da área de ensino de História, Faculdade de Educação, UFRGS
A aula se iniciou e recém davam-se os primeiros movimentos (chamada, esquema no quadro, distribuição de “folhinha”...) quando surge uma voz fina, pouco escutada corriqueiramente na sala, desde o canto esquerdo, ao fundo, e pergunta, em tom de pura curiosidade:
– Professor, o senhor é marxista?
Ato contínuo, seguiu-se um fabuloso silêncio. Aquele que suspende a narrativa, oralizada ou escrita. Somente os gestos, os olhares, um certo desassossego do corpo, inclusive do professor, insistem no tempo. Num mergulho nesse silêncio, que consome os argumentos e desafia Cronos, a aula tinha que continuar. Não se sabe bem qual a medida daquele silêncio, qual a sua extensão. Pode ter sido não mais do que 30 segundos, mas também pode ter sido quase a aula inteira, perto de 50 minutos.
Sabe-se que o que ocorreu ali foi uma duração de silêncio e dela emergiu uma narrativa professoral para responder a inusitada pergunta do aluno.
– Eu sou muitas coisas – inicia o professor. – Certamente, dentre tudo o que sou, sou marxista. O marxismo também é muitas coisas: uma filosofia que procura responder o que somos ou o que é nossa realidade; uma teoria social que se põe a estudar as relações entre as pessoas e grupos sociais; uma teoria política; uma tendência teórica; uma metodologia de análise histórica, enfim, uma multiplicidade. Eu sou marxista porque o marxismo me ajudou a entender um pouco dessa minha profusão de “eus”, inconstantes e voláteis. O marxismo me ajudou a compreender porque somos uma sociedade de hierarquias e de desigualdades e me ofereceu uma certa cosmologia, para que eu pusesse um pouco de linguagem no Caos e um pouco de sentido na vida. Talvez se pudesse imaginar que Marx e Engels tivessem partido de um disparador, uma desacomodação, uma problemática que os inquietava, como se perguntassem a si mesmos: “Por que um operário que fabrica um terno em uma tecelagem inglesa, em meados do século 19, não tem condições de comprar o próprio produto do seu trabalho?.
Ele prossegue:
– O que quero dizer é que, sempre que perguntamos algo sobre a realidade, sobre o passado, sobre os problemas do presente, sobre nós mesmos, ou “de onde viemos”, “para onde vamos”, nos pomos a criar modos de responder tais perguntas e, para tal, criamos maneiras diversas, plurais, diferentes de responder: pode ser através de histórias, de teorias, de hipóteses; pode ser através da religião, do mito, da ciência ou de formas que nem supomos ou mesmo imaginamos que existam. O marxismo é apenas um modo de fazer isso. Mas, como disse, há muitos outros. E é bem verdade que o que somos (eu sou esses múltiplos “eus” que me fazem “devir”) é um cruzamento de diversas respostas, a partir de diversos lugares, como os que citei há pouco. Eu gostei do marxismo porque vi uma generosidade incrível em seu modo de ver o mundo; havia ali amor pelo outro, indignação com a pobreza, com a fome e com a desigualdade. Então, sim, um desses “eus” que sou é marxista. Mas eu também sou cristão. Vejo o cristianismo como uma filosofia, uma teoria social, um modo de dar sentido à vida, um modo de explicação o que somos, “de onde viemos”, “para onde vamos”. Vejo uma grande generosidade nele: a ideia de considerar o amor (caritás) como a força que torna os encontros positivos é incrível também. Afinal, esse amor não se ensoberbece, ele não se orgulha, ele é paciente, ele é pura doação ao outro.
E o professor não é só isso.
– Sou um pouco Yanomami – continua. – Pois creio que a floresta é uma continuidade de mim mesmo. Queria me ver junto a ela numa grande memória, num grande sonho, distante dessa relação de alguém culto que trabalha e modifica a natureza, como se ela fosse meu outro, sob meu completo domínio. O sonho Yanomami me aproxima de uma vida no tempo, no labirinto, na intuição das forças que produzem as linhas do que sabemos ou pensamos. Sou pura aprendizagem com os tambores africanos. Com os Griôs, que tenho tentado, com paciência e respeito, conhecer, mas, sobretudo, ter experiências que produzam estilhaçamentos no que fui, no que sou, nos cristais definidores que ainda me habitam a memória (essa estrutura que, às vezes, me faz pender para onde não quero me deixar envergar).
São tantos “eus” que o professor também pode ser visto de muitos modos.
– Alguns dizem que sou pós-moderno; no que resisto, mas nem insisto em desmentir. Foucault, Nietzsche, Deleuze, Guattari, Blanchot (a Sandra, Tomaz e Paola) me aproximam do corpo. Do “corpo sem órgãos”. Da abertura por onde tudo passa. Da “memória absoluta” que conserva as forças livres e selvagens de afirmação da vida. Tudo isso e mais (Dionísio, por exemplo) me fazem percorrer devires-minoritários. E me fazem pensar que a aula de História é Caos, habitada por muito mais do que as matérias formadas que podemos ver e dizer, mas por forças, como a generosidade dos marxistas, o amor dos cristãos, o sonho Yanomami, a musicalidade dos valores afro-brasileiros.
– Enfim, não sei se foi possível responder à pergunta que fizeste – diz o professor ao aluno. – O que sei é que me parece que tudo o que ocorre em sala de aula, falo das perguntas e das relações, é de uma complexidade que não cabe nos 50 minutos que dura nosso encontro, muito menos em frases de efeito ou postagens de redes sociais, que banalizam as perguntas e simplificam as respostas.
– Uma coisa persiste – ele acrescenta, ainda. – Essa multiplicidade que se apresentou agora, que sou eu, ou as linhas que me cruzam, acredita que há muitas outras formas de ver o mundo, de pensar a realidade, de entender as relações sociais, mas algumas delas não cabem na sala de aula, nem em nossa vida. São aquelas que pregam o ódio, que produzem a guerra, que criam preconceitos e que disseminam a intolerância.
Mais uma vez, o silêncio. Sem mais perguntas, sem mais respostas. Apenas o silêncio, energia vital da criação e do pensamento. Fim da aula. Isso é, da aula “estado de coisas”, porque o que aconteceu ali dura e sobrevoa a superfície do tempo, produzindo efeitos incorporais.