Em sua entrevista de emprego, Michelle Brea Soares, 38 anos, não revelou nada sobre sua condição de mulher transexual, tampouco foi questionada pelos recrutadores a respeito. Naquele momento, interessava à empresa, na qual ela concorria a uma vaga, o principal, que não tinha a ver com sua orientação sexual ou identidade de gênero: como ela atua em equipe, suas principais características no local de trabalho, qual é seu comportamento nas situações em que se encontra sob pressão, o que gosta de fazer nas horas vagas.
Graduada em Sistemas de Informação, Michelle, nascida com as características anatômicas do sexo masculino e que iniciou seu processo de transição para assumir a identidade feminina quatro anos atrás, foi contratada. Há oito meses em uma empresa de tecnologia de informação no Vale do Sinos, atua como engenheira sênior de suporte e também participa, eventualmente, do processo seletivo de funcionários, como entrevistadora.
Neste 28 de junho, Dia do Orgulho LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e outros grupos minorizados), iniciativas como esta, que contribuem para tornar organizações mais abertas à diversidade, são consideradas cada vez mais essenciais no universo corporativo.
— A empresa se mostra inclusiva quando qualquer das letras (da sigla) LGBT+ são irrelevantes na entrevista. Não haverá uma avaliação para ver se sou capacitada como mulher trans. Ser parte de uma minoria social não faz diferença para você ser ou não contratado. As suas competências como ser humano é que serão avaliadas — diz Michelle.
— Quando você é admitido na empresa, aí começa a fazer diferença ser LGBT+. Passei pelo recrutamento por conta das minhas capacitações profissionais, mas faz diferença eu ser trans porque as pessoas têm que lidar com essa questão já na porta de entrada — complementa.
Segundo a engenheira, a reação da empresa foi de "felicidade" quando ela informou a respeito de sua condição — Michelle é a primeira mulher trans entre os mais de 1,3 mil funcionários da companhia no Rio Grande do Sul. Ela desenvolve suas atividades em um ambiente que classifica como acolhedor. Em um setor de 40 pessoas e prevalência de homens, ela saúda a presença de oito mulheres, oito indivíduos LGBT+ e um negro:
— É supertranquilo. A empresa previne que pessoas preconceituosas possam se comportar de maneira preconceituosa no trabalho.
Valor agregado com a diversidade
Elaine Terceiro, psicóloga e consultora sênior de Diversidade e Inclusão da Mais Diversidade, de São Paulo, ressalta a importância da adoção do critério da diversidade pelas organizações:
— As empresas se deram conta de que a diversidade e a inclusão agregam valor para o negócio, seja de que segmento for. A pluralidade das pessoas traz resultado, melhora o clima, gera inovação e criatividade. Um ambiente de pessoas homogêneas não tem ideias novas, acaba todo mundo pensando de forma muito parecida. Com a diversidade, você cria soluções novas. Um ambiente de trabalho com pessoas que podem se expressar têm menos absenteísmo (faltas), menos turnover (rotatividade). A produtividade melhora.
A multiplicidade de perfis no que se refere a orientação sexual e identidade de gênero também gera mais lucro. Citando dados de uma pesquisa da consultoria norte-americana McKinsey & Company, Elaine explica que companhias que prezam e colocam em prática a diversidade têm mais chance de retorno financeiro do que a média de mercado.
Ser parte de uma minoria social não faz diferença para você ser ou não contratado. As suas competências como ser humano é que serão avaliadas
MICHELLE BREA SOARES
Engenheira sênior de suporte
— As pessoas que conseguem falar sobre sua orientação em um ambiente que tem segurança psicológica são até 35% mais produtivas. Esses funcionários têm mais criatividade, velocidade de entrega, soluções mais inovadoras — comenta a consultora.
— A pessoa que não fala se retrai, se isola, pode ter agravamento no quadro emocional, não consegue ter concentração para o trabalho, não consegue se dedicar — enumera.
Atuante em prol da diversidade dentro e fora da organização, Michelle está habituada a falar sobre sua história. Ela acredita que o processo foi muito bem conduzido pela empresa onde estava à época de sua transição. Um psicólogo e a equipe de Recursos Humanos (RH) explicaram a situação pela qual ela estava passando aos gestores. Depois de 10 meses de preparação, e quando a transformação na esfera pessoal já havia ocorrido totalmente, chegou o chamado Day One ("dia um", em inglês) no trabalho: Michelle começou a utilizar crachá e conta de e-mail com o nome que havia escolhido. Ninguém nunca a chamou pelo nome antigo, mas alguns colegas lhe confidenciaram que ainda a viam como a pessoa de antes.
— Costumo dizer que todos os privilégios que conquistei foi com a sociedade me vendo como um homem, e isso facilita bastante. Hoje, quando já tenho os privilégios conquistados, ser uma mulher trans não me impossibilita de nada. Mas ser uma mulher trans (desde mais cedo) tornaria tudo mais difícil — reflete.
Trabalho para disseminar informações corretas e conscientizar as pessoas
Na Dell Technologies, em Eldorado do Sul, o consultor de RH William Pinheiro dos Santos entrou no programa Pride ("orgulho", em inglês) para conhecer mais sobre o tema. William não é LGBT+, mas seu interesse nasceu a partir das vivências em família: seu irmão é homossexual.
— Eu era extremamente ignorante no assunto. Abracei tanto a causa, me engajei tanto, aprendi tanto, que acabei aumentando minha responsabilidade — conta William, hoje líder do Pride em todos os escritórios da Dell no Brasil.
William é o que se chama de "aliado" da causa — pessoas que não são LGBT+, mas que também batalham pela disseminação de informações corretas e pela conscientização do público em geral. O consultor acredita que os benefícios do tempo que dedica à tarefa, em eventos dentro e fora da empresa, extrapolaram o âmbito profissional.
— Me tornei um irmão muito melhor. Quando falo de diversidade e inclusão, digo que quero ser, para outras pessoas, o irmão que não fui para o meu irmão. É difícil conseguir entender o sofrimento que não faz parte da sua realidade — afirma William.
Esta reportagem foi dividida em duas partes. Veja neste link como uma empresa pode se abrir para a diversidade