Em uma quinta-feira recente em Londres, um grupo de modelos desfilou na passarela ao som de "Woman's World", da Cher, vestindo um conjunto rendado de calcinha fio dental e sutiã realçado com robe de seda de muito bom gosto. Todas eram mulheres trans, e a coleção, Carmen Liu Lingerie, estava cheia de peças desenhadas para elas.
Carmen Liu, de 27 anos, é a fundadora da marca. "Você vê todos esses anúncios maravilhosos com imagens de lingeries, mas nada disso serve para nós", disse, observando que mulheres trans, como ela, possuem necessidades que a lingerie tradicional não leva em consideração.
O dr. Richard Santucci, de 53 anos, cirurgião sênior no Crane Surgical Services, uma clínica com unidades em San Francisco e em Austin, no Texas, que realiza cirurgias de redesignação sexual, contou que apenas uma parcela das mulheres faz a cirurgia de readequação dos genitais.
Segundo a Pesquisa Americana sobre Transgêneros de 2015, 12 por cento das mulheres trans que responderam ao questionário se submeteram a uma vaginoplastia. Ou seja, existe um mercado para roupas íntimas funcionais que permitem disfarçar a presença dos genitais masculinos.
A coleção de Liu apresenta uma série de calcinhas, como a no estilo fio dental "Você é Tão Graciosa", disponível em 11 cores e que custa cerca de 29 dólares (quase 120 reais). A base foi projetada para mulheres trans em fase pré-cirúrgica ou para aquelas que optaram por abdicar da vaginoplastia, muitas das quais já tiveram de fazer uso de alternativas, como a fita médica.
Liu informa que a linha GI, concebida para ser "tão sexy quanto uma lingerie cisgênera", recebeu tripla camada de tecido: "É forte, porém confortável o suficiente para segurar tudo no lugar certo." Antes, ela precisava usar uma calcinha tipo gaff, que é como o fio dental, mas criada para esconder os genitais e criar uma faixa lisa. Ela se referiu à peça como "um produto terrível – não fica sexy e não é produzido com tecido de lingerie".
Outras, como Laiah St. Jerry, de 26 anos, que desfilou para Liu, costumavam fazer os próprios apetrechos, removendo a parte de cima de um par de meias-calças e deslizando uma meia cortada pelo elástico. "Dá muito trabalho e pode ser bastante desconfortável", revelou St. Jerry.
Para as mulheres trans, é mais fácil encontrar sutiãs, mas Liu destacou que achar sutiãs que combinem com as calcinhas pode ser quase impossível. "Você pode comprar um sutiã cisgênero em uma loja, mas teria de comprar uma calcinha que não combina. É como se jogassem na sua cara que você é diferente toda vez que tira a roupa."
A coleção de Liu traz possibilidades de combinar as partes de cima com as de baixo. O sutiã de cetim com renda e bojo com armação (39 dólares, ou 160 reais) é adequado para mulheres desde o início da terapia de reposição hormonal até os seios alcançarem tamanho médio. O sutiã de cetim puro com bojo e armação (mesmo valor) serve para bustos que variam do tamanho médio até duas medidas acima. Ambas as opções foram projetadas para acomodar a região do peito geralmente mais larga da mulher transgênero.
Liu promove a linha como "a primeira marca de lingerie transgênero do mundo", mas existem outras lojas no mercado que oferecem roupas íntimas acessíveis a pessoas trans e não binárias.
Roupas íntimas para todos
A Origami Customs, baseada em Montreal, tem uma linha de gaffs compressoras feitas sob medida com malha dupla, do tamanho extrapequeno ao extragrande. Os preços variam de 28 a 55 dólares (cerca de 120 a 220 reais) e levam de duas a quatro semanas para ficarem prontas. A marca também fabrica sutiãs com qualquer combinação de tamanho entre o bojo e a faixa sob o busto e faz inserções para todos os estágios de tamanho dos seios.
"As peças não são desenhadas para atender a nenhuma ideia pré-concebida do que um corpo ou gênero deva ser. A existência trans não está fundamentada na decisão de escolher procedimentos médicos ou transformar o corpo. E celebro a singularidade da experiência de cada pessoa por meio das roupas que confecciono", expôs Rae Hill, de 29 anos, que fundou a empresa em 2010.
A Rebirth Garments produz uma linha de calcinhas que escondem a genitália e são decoradas com cores neon e formas geométricas. As versões de lycra e veludo recebem cobertura de malha compressora. O estilista da marca, Sky Cubacub, de 27 anos, começou a comercializar os produtos no site de e-commerce Etsy em 2014. Ele proibiu o preto e o vermelho para oferecer às suas consumidoras uma experiência com cores mais vibrantes e desenhos mais divertidos como uma maneira de desafiar "as ideias heteronormativas do que é ser sexy".
E Rose Rayos, de 27 anos (conhecida como "Miss Boogie"), uma mulher trans do Brooklyn, está tentando redefinir a gaff com opções mais macias, flexíveis e arejadas que se encaixem no conceito de roupas casuais e confortáveis para práticas de exercícios. "Tradicionalmente, a maioria das gaffs são feitas com tecidos de roupas de banho", esclareceu.
Para eles
Homens transgênero também possuem necessidades especiais em relação às roupas íntimas e, da mesma forma, as empresas estão começando a perceber isso.
A TomboyX, uma empresa de vestuário de gênero neutro, se tornou particularmente popular entre homens trans que não se submeteram a cirurgias de mudança de sexo, um procedimento que Santucci chamou de "massivo". Entre os homens transgêneros que responderam à Pesquisa Americana sobre Transgêneros de 2015, apenas 2 por cento fizeram uma metoidioplastia e 3 por cento, uma faloplastia.
Ryan Cassata, de 25 anos, é um homem trans, cantor e compositor que, nos últimos três anos, tem usado cuecas tipo boxer da TomboyX, além de modelar para a marca. "Elas são extremamente macias e ficam masculinas no corpo", elogiou.
Ian Harvie, de 50 anos, homem trans que atua como comediante e ator em Los Angeles, usa cuecas boxers da Tommy Hilfiger compradas na T. J. Maxx. Ele declarou que levou dez anos para encontrar um modelo que vestisse bem o corpo. "Era apenas uma questão de encontrar um corte de que eu gostasse", disse.
No dia a dia, muitos homens transgêneros, como Harvie, se viram com cuecas convencionais. Alguns "preenchem" a região dos genitais quando vão a lugares como a academia de ginástica. Isso exige uma cueca especial que tenha um compartimento onde os usuários possam acomodar de forma confortável uma prótese.
Alguns homens na fase da transição adquirem uma faixa para disfarçar os seios e evitar a disforia de gênero.
A marca All Is Fair in Love and Wear foi financiada por meio de uma campanha no Kickstarter em 2016 com o propósito de oferecer opções de faixas confortáveis. Christian Dominique, de 23 anos, diretor da marca, afirmou que muitas faixas comerciais passam a sensação de que se está usando uma lona.
"Imagine vestir um saco apertado de juta em volta do peito que é impossível de colocar e tirar", ponderou. As versões que fabrica são produzidas com o mesmo material de roupa de banho e oferecem elasticidade para áreas sensíveis, como a abertura para o pescoço e na altura das axilas.
Dominique frequentemente dá palestras sobre como usar a faixa de forma segura e enfatiza a importância de não "ficar com as faixas por mais de oito horas, enquanto dorme ou usar tamanhos muito pequenos", o que pode levar ao deslocamento de costelas e acúmulo de fluido no pulmão.
Tradicional, mas novo
O que mudou é que, agora, está mais fácil do que nunca atingir o público-alvo por meio das redes sociais e do comércio on-line; também encontramos com mais facilidade os tecidos necessários para a produção desses itens.
CORA HARRINGTON
autora do livro "In Intimate Detail: How to Choose, Wear, and Love Lingerie"
Cora Harrington, de 34 anos, autora do livro "In Intimate Detail: How to Choose, Wear, and Love Lingerie" (Em detalhes: como escolher, vestir e amar lingeries, em tradução livre), garantiu que produtos para a população transgênero sempre existiram. "O que mudou é que, agora, está mais fácil do que nunca atingir o público-alvo por meio das redes sociais e do comércio on-line; também encontramos com mais facilidade os tecidos necessários para a produção desses itens."
A Knixteen, uma empresa que cria calcinhas para adolescentes usarem durante o período menstrual, recentemente contratou Jazz Jennings, de 18 anos, estrela do reality show "I Am Jazz", exibido pelo canal americano TLC, para projetar o "Sutiã Jazz".
Jennings escolheu o roxo para sua criação – a cor representa a Fundação Trans-Kids Purple Rainbow, gerida por sua família. Para a estampa, conchas, inspiradas nas sereias que, segundo Jennings, são populares entre jovens que não aceitam estereótipos de gênero, visto que "sereias não têm órgãos genitais e são basicamente sem gênero".
Em 2015, a Thinx criou uma linha de shortinhos para pessoas que menstruam. "É uma das peças com mais saída", afirmou Siobhan Lonergan, de 47 anos, executivo-chefe da marca. A campanha do produto, que representou 8% das vendas de 2018, foi estrelada pelo modelo transgênero Sawyer DeVuyst. "Percebemos que nem todo mundo que menstrua se identifica como mulher", esclareceu Lonergan.
As marcas mais tradicionais de lingerie ainda precisam incorporar peças trans no catálogo. Em 2018, Ed Razek, diretor de marketing da Victoria's Secret, foi taxativo ao declarar que não teria uma modelo transgênero no desfile anual da marca, implicando que elas não fazem parte de "uma fantasia". Foi um revés para Carmen Carrera, de 33 anos, modelo que estava fazendo campanha para se tornar a primeira "angel" trans da marca americana.
Kimmay Caldwell, de 34 anos, profissional e educadora especializada em roupas íntimas e adequação de sutiãs, acredita que isso acabará mudando. "Quanto mais essa demanda partir dos varejistas, que estão ficando mais abertos e inclusivos, veremos esses produtos conquistando espaço em mais lojas", sentenciou.
Por Nicole Pajer