Uma iniciativa que beneficia surdos que utilizam da tecnologia para voltar a ouvir acaba de ser contemplada com US$ 1 milhão (cerca de R$ 3,7 milhões) pelo Facebook. Paula Pfeifer, escritora de 37 anos nascida em Santa Maria e radicada no Rio de Janeiro, é autora do projeto Crônicas da Surdez, única proposta latino-americana a figurar como uma das cinco grandes vencedoras da competição, ao lado de representantes de Índia, França, Estados Unidos e Quênia.
O Community Leadership Program (Programa de Liderança na Comunidade) destaca ideias que aproveitam as plataformas do gigante das redes sociais – Facebook, Messenger e WhatsApp – para conectar indivíduos em torno de um objetivo comum. Ao todo, mais de cem participantes foram contemplados na seleção que recebeu mais de 6 mil inscrições de todo o mundo. Além do prêmio milionário para os ganhadores principais, os demais líderes receberão também um incentivo financeiro (US$ 50 mil – cerca de R$ 185 mil) para tocar suas propostas adiante.
Crônicas da Surdez nasceu como blog, que hoje tem uma média de 110 mil visualizações mensais, transformou-se em dois livros (Crônicas da Surdez e Novas Crônicas da Surdez, ambos lançados pela Editora Plexus, e há um terceiro título em produção) e hoje é também um grupo no Facebook que reúne quase 10 mil membros com surdez que buscam na tecnologia a chance de escutar outra vez, com aparelho auditivo ou implante coclear (dispositivo eletrônico em duas partes: uma interna, introduzida cirurgicamente atrás da orelha, e outra externa, que fica aparente), além de surdos que têm indicação para o uso desses dispositivos.
Com dificuldade para ouvir desde a infância, Paula recebeu quando adolescente o diagnóstico de deficiência auditiva bilateral progressiva, neurossensorial, de caráter moderadamente severo e irreversível, problema que se intensificaria ao longo dos anos. Ela viveu como surda oralizada, capaz de falar e fazer leitura labial (sem recorrer à língua de sinais), com aparelhos auditivos, até a perda total da audição. Em 2013 e 2016, a gaúcha se submeteu à colocação de seus implantes cocleares, um de cada lado, reabilitando-se.
Me senti de alma lavada. Há praticamente 10 anos que levantei essa bandeira e milito incansavelmente por ela. O que a reabilitação auditiva é capaz de fazer por uma pessoa surda não tem preço e muda vidas.
PAULA PFEIFER
Escritora, 37 anos
O projeto brasileiro reconhecido pela megaempresa de tecnologia norte-americana prevê uma campanha de esclarecimento a respeito dos surdos que ouvem, uma vez que, segundo Paula, aparelhos auditivos e implantes cocleares são "completos desconhecidos" para a maior parte da população, que associa a surdez exclusivamente à língua de sinais. A proposta também inclui doação de aparelhos para quem não tem condições de comprá-los e medidas em favor da acessibilidade dos surdos que ouvem – como implementação de legendas e aro magnético (recurso que pode ser instalado nos ambientes para melhorar a audição dos usuários de aparelho auditivo).
– Me senti de alma lavada. Há praticamente 10 anos que levantei essa bandeira e milito incansavelmente por ela – vibra Paula. – O que a reabilitação auditiva é capaz de fazer por uma pessoa surda não tem preço e muda vidas. E muita gente nem sabe que possui essa opção, sendo que o Brasil é um país com uma das melhores políticas de reabilitação auditiva do mundo.
Poder da tecnologia para mudar a vida de quem não ouve
A escritora é casada com um médico otorrinolaringologista, com quem trabalha em uma clínica, e é mãe de Lucas, seis meses. Paula participa de eventos e palestras pelo Brasil, falando para deficientes auditivos e também em empresas.
– Sem meus ouvidos biônicos, não escuto nem uma turbina de avião ligada ao meu lado. Com eles, falo ao telefone, cuido do meu bebê, me comunico em outras línguas e controlo minha voz. Meu sonho é que todas as pessoas com deficiência auditiva tenham acesso a essas tecnologias. A tecnologia hoje é capaz de ajudar a maioria absoluta dos casos de surdez – afirma.
Paula soube do concurso do Facebook quando a executiva Sheryl Sandberg compartilhou um link convocando os interessados a se inscreverem. À medida em que foi vencendo as etapas seletivas, cresceu na escritora a sensação de que pudesse se tornar uma das ganhadoras de um dos prêmios menores, mas ela confessa que nunca imaginou ser classificada entre os top 5. Além da verba, o Facebook oferecerá treinamento e suporte aos idealizadores das iniciativas ao longo de um ano. Na primeira etapa da parceria, o projeto será detalhado e orçado para que, então, o dinheiro comece a ser liberado. A escritora pretende pleitear também outros patrocínios.
– Esse endosso do gigante de mídia do Vale do Silício tem um valor inestimável para a nossa causa. A surdez é a deficiência invisível. Os surdos que ouvem são ainda mais invisíveis e não têm acesso às verbas que o governo destina para essa deficiência – argumenta.
Os principais ganhadores
Cinco projetos vencedores do Programa de Liderança na Comunidade receberão, cada um, US$ 1 milhão (R$ 3,7 milhões) do Facebook:
– Paula Pfeifer, do Brasil, criou uma comunidade de deficientes auditivos que utilizam a tecnologia para ouvir e quebrar o isolamento social. A iniciativa Crônicas da Surdez oferece suporte emocional e permite a troca de informações entre os participantes.
– Adhunika Prakash, da Índia, organizou um grupo de mais de 80 mil pessoas que dá e recebe apoio durante os diversos estágios do aleitamento materno, especialmente nas regiões rurais no país.
– Christian Delachet, da França, é cofundador de uma comunidade, com grupos espalhados pelo país, em que vizinhos se disponibilizam para ajudar uns aos outros, online e ao vivo.
– Latasha Morrison, dos Estados Unidos, almeja a reconciliação racial em seu país. Ela formou uma rede online de pequenos grupos que organiza encontros presenciais para discussões.
– Noah Nasiali, do Quênia, conectou mais de 100 mil fazendeiros de toda a África em menos de um ano. A comunidade os ajuda a adquirir conhecimento e a compartilhar informações que têm impacto em suas plantações, aumentando a produção e o lucro.