Por Nestor Paulo Friedrich
Pastor presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
Martim Lutero e o seu empenho que resultou na Reforma precisam ser compreendidos a partir da sua teologia. Enquanto a Igreja da época difundia a imagem de Deus como juiz severo, o que favorecia o comércio de indulgências (a venda do perdão), Lutero redescobriu a mensagem verdadeira da Escritura: o sacrifício de Cristo trouxe (e traz a cada novo dia) o presente (a graça) chamada perdão. O que Deus requer de nós (e este é seu amoroso convite) é que peçamos perdão, nos arrependamos e, em resposta, vivamos como pessoas generosas, solidárias, promotoras da paz e da justiça. A partir dessa redescoberta, Lutero sentiu-se livre, livre de medo e culpa diante de Deus e pronto para mostrar as consequências dessa fé para a vida em sociedade.
É possível que ainda não tenha sido suficientemente compreendido – tanto por luteranos e luteranas quanto pela sociedade brasileira – o legado da Reforma do século 16 a partir da teologia de Lutero. Tomemos como exemplo a educação. Lutero foi enfático nesse aspecto. Ele constatou que, na sua época, a população era ludibriada em nome da religião e pela política, e grande parte disso se devia ao fato de o povo ser iletrado. Ouvia pregações como se fosse o Evangelho, mas não era. Daí que defendeu a importância da escola. Para Lutero, em linguagem de hoje, para cada R$ 1 investido em armas deveriam ser investidos R$ 100 em educação. Educação é parte da dignidade humana. Lembremos que ele defendeu o direito da educação também para mulheres. Justiça de gênero já era mote no tempo de Lutero.
O que fizeram as famílias luteranas que vieram ao Brasil a partir de 1824? Ali, onde um grupo de famílias luteranas abria uma picada para fincar suas raízes, a primeira providência era criar condições para as crianças disporem de escola. Eine Kirche e Eine Schule diziam: "Uma Igreja = Uma Escola". Não é, pois, obra do acaso que, no Rio Grande do Sul, antes do período Getúlio Vargas, havia quase 500 escolas comunitárias ligadas às comunidades que hoje formam a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Das teses de Lutero, temos a valorizar a importância da sua visão de ética. Ética na política, por exemplo, que tanto faz falta no Brasil. Lutero não misturou nem confundiu ética cristã e política. Ele distinguiu e relacionou. Para o Reformador, fazer política é cuidar de quem sofre e impedir que se pratique o mal. Lutero explicou a sua tese a partir da consulta que recebera de João Frederico, Duque da Saxônia, que pedira ajuda e orientação para a sua tarefa de governar. Pediu a Lutero "orientações sobre como governar cristãmente".
Lutero atendeu ao pedido do Duque. Para tal, tomou por base o Magnificat – o Cântico de Maria (Lucas 1.46-55). Para o Reformador, é imperioso que "governantes se deixem governar pela graça e ajuda de Deus, para o bem do povo. A qualidade de vida do povo evidenciará se o governante é governado ou não pela graça de Deus: Desejo a Vossa Alteza a graça e a ajuda divina. Isso é muito necessário. O bem-estar de muita gente depende de um príncipe – quando ele é governado pela graça de Deus. Por outro lado, dele depende a desgraça de muitos, quando volta-se para si próprio e não é governado pela graça. Todos os que quiserem governar bem e ser boas autoridades devem aprender bem e guardar na memória aquele cântico".
A ética luterana requer saber que, como pessoas cristãs, temos responsabilidade cidadã. Lutero tem uma singela e profunda definição de ética. Disse: "Se eu soubesse que morreria amanhã, ainda hoje pagaria minhas dívidas". Pensemos como seria a nossa convivência em sociedade se essa ética governasse os nossos atos, inclusive na nossa cidade.