Na noite de terça-feira, o Brasil parou para ver Ivana, personagem transgênero da novela A Força do Querer, revelar a sua família:
– Nunca fui uma mulher. Eu sou um homem que nasceu assim, nesse corpo errado.
O capítulo, o mais assistido da trama do horário nobre – com um crescimento de 14% em comparação com os capítulos exibidos nas quatro semanas anteriores na Região Metropolitana de Porto Alegre –, apontou para uma realidade que não é novidade em muitas famílias brasileiras, ao mesmo tempo em que colocou em debate termos como "transgênero" e "transexualidade" para quem desconhece situações como a da personagem.
O Programa de Identidade de Gênero do Hospital de Clínicas de Porto Alegre atende atualmente cerca de 200 transexuais – "pessoas que têm convicção que nasceram com o sexo oposto ao seu gênero de identidade", nas palavras da coordenadora, a psiquiatra Maria Inês Lobato. Transgênero é uma denominação mais ampla, que inclui, além de transexuais, outras variações de identidade de gênero, como travestis, de acordo com a especialista.
Maria Inês explica que, aos transexuais, ainda na infância começam a aparecer os primeiros sinais de conflito com seu gênero. O comportamento da personagem interpretada por Carol Duarte ao tentar esconder os seios com faixas, além de anunciar para a família que iria "tirá-los", também é muito comum entre homens trans – pessoas que não se reconhecem no corpo de mulher.
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– Os seios significam a feminilidade que ela não reconhece nela mesmo. Aquilo não pertence a ela – comenta Maria Inês.
O fato de Ivana se atrair por um homem, embora não seja o mais comum, também é possível. Professora titular da Faculdade de Educação da UFRGS e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, Jane Felipe, observa:
– As pessoas fazem uma confusão conceitual muito grande, de gênero com orientação sexual. Há uma distorção que as pessoas fazem, de que o fato de ela se sentir desconfortável com seu corpo, signifique que seja lésbica.
A reação da família da personagem – marcada por choro, questionamentos e recusa dos pais (Dan Stulbach e Maria Fernanda Cândido) e do irmão (Fiuk) – também reflete o drama de muitos. Mesmo que o desconforto comece na infância e se intensifique muito na adolescência, tem pais que demoram ou se recusam a assimilar os sinais de conflito de gênero.
– As famílias em geral não querem enxergar determinadas coisas, ocorre uma negação por conta do desconhecimento, do preconceito e por conta dessa ilusão que se tem que a gente pode moldar a criança como se fosse uma folha em branco – diz Jane.
Maria Inês destaca a importância de voltar a atenção para crianças e adolescentes. Ela esclarece que só 5% das crianças com comportamento atípico vão ter a condição de transexualidade, mas nos casos em que isso ocorre, o acompanhamento de profissionais é importante.
– O objetivo é ajudar a família e a criança a lidar com aquilo sem tanta hostilidade social – diz ela.
Insatisfação com a imagem da personagem é comum
Bem como a personagem de A Força do Querer, Henry Brandão, 22 anos, também já se viu chorando na frente do espelho, insatisfeito com o que via.
– Aquilo que eu via não é o que eu sou, o que eu queria ser.
Chefe de gabinete na Secretaria de Direitos Humanos de São Leopoldo, Henry conta que, desde pequeno, sempre se sentiu diferente, desconfortável com algo que ele não sabia exatamente o que era.
– Eu sofria bullying porque me vestia como os meus irmãos, estava no meio dos meninos. Sempre jogava futebol, basquete, queria ser que nem eles, ter a aparência deles, minha identificação apareceu a partir daí – afirma Henry, que tem dois irmãos e uma irmã, todos mais velhos.
Aos 17 anos, após ler e conversar com algumas pessoas, ele entendeu que era transexual. Ficou, então, um tempo se preparando até estar pronto para contar à família.
– Me preparei por quase dois anos até que sentei e conversei com a minha mãe. Conversamos quase três horas e choramos muito. Ela meio que aceitou, mas não entendia. Ela achava que era uma fase – explica.
Em 2015, Henry conseguiu o seu nome social em Esteio, cidade onde mora. Mas algumas pessoas insistem em tratá-lo no feminino. O fato de ainda não ter conseguido começar o tratamento hormonal é uma questão que o incomoda.
– Não me sinto satisfeito com a minha imagem, eu só vou me sentir bem quando eu conseguir a minha cirurgia (de retirada das mamas) e começar o tratamento de hormônios. Todos os dias tenho de passar a fita durex em volta do peitoral, fechar a camisa social e ir trabalhar. Porque senão, algumas pessoas não vão me respeitar como homem.
Brasil tem evolução técnica, mas muito preconceito
Para a psiquiatra Maria Inês Lobato, quando o assunto é transexualidade, o Brasil é exemplo em termos jurídicos e médicos. Ela destaca o avanço que ocorreu nos últimos 20 anos, desde 1997, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização no país. O SUS realiza desde 2008 cirurgias de redesignação sexual, e, a partir de novembro de 2013, o Ministério da Saúde ampliou o processo transexualizador no SUS, aumentando o número de procedimentos ambulatoriais e hospitalares e incluindo procedimentos para redesignação sexual de mulher para homem.
Mas o país não demonstra a mesma evolução quando o assunto é preconceito.
– O Brasil tem legislação que protege, que dá direito gratuito a todo o tratamento. A maioria dos tribunais já reconhecem o direito à troca de nome, direito à vida civil, união estável. O que falta é informação, é entender que a transexualidade não é uma decisão. É algo que se nasce, que ninguém absolutamente está livre de ter essa condição.
Jane Felipe acrescenta que o Brasil está vivendo um momento de redução de investimentos em educação e cultura, o que vai dificultar a propagação dessas informações. Ela lembra que recentemente também ocorreram retrocessos.
– Vivemos uma época em que grupos conservadores estão trabalhado no sentido de tirar direitos das mulheres e dos grupos minoritários. Há um certo pânico moral que se instalou. Em 2015, com a retirada de qualquer menção a questão de gênero do Plano Nacional de Educação desencadeou a retirada dos planos estaduais e municipais. Mas esses temas são importantes de serem discutidos, têm uma relação direta com respeito, direitos humanos e ética.
*Colaborou Carolina Cattaneo