Foi dentro do banheiro da casa da família que Renato de Oliveira Nunes Junior, então com 13 anos, do Bairro Umbu, em Alvorada, arriscou as primeiras notas no trompete emprestado pela escola. Na época, sem qualquer perspectiva de se tornar musicista, encarava a atividade apenas como uma brincadeira. Mas a insistência em incomodar os ouvidos dos pais e do irmão, aos poucos, ganhou novo status: ser trompetista profissional tornou-se de meta de vida.
Sete anos depois, Renato, hoje aos 19, é aluno da Escola de Música da Ospa e acaba de conquistar uma bolsa para estudar durante oito meses na Bélgica. Para isso, porém, depende da solidariedade. Pelos cálculos, são necessários mais de R$ 30 mil para que o jovem possa cursar as aulas no conservatório de música International Brass Studio, a convite do professor e trompetista Dominique Bodart, que o conheceu durante quatro aulas oferecidas por ele em Porto Alegre, em abril deste ano. O dia do convite, aliás, é considerado pelo jovem como o mais feliz da vida até agora.
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— O professor me elogiou e me convidou para começar os estudos em outubro deste ano. A escola oferece a metade do valor do curso, com acesso a todas as masterclasses com solistas internacionais e aos eventos promovidos pela academia. É uma oportunidade única de desenvolver minhas habilidades e me tornar um músico de excelência! — reforça, animado, Renato.
Um vídeo do jovem, acompanhado dos valores para a permanência dele na Europa, circula numa página de financiamento coletivo. É por lá que a quantia pretende ser arrecadada. Apesar do apoio incondicional, a família — a mãe é dona de casa e o padrasto, instalador de janelas de PVC — não dispõe dos recursos financeiros necessários para bancarem a viagem. Mesmo com a dificuldade, Renato não esmorece. Pelo contrário, afirma ser apenas mais um teste na trajetória de quem nunca abaixou a cabeça para os problemas.
Ao ingressar na banda marcial da Escola Estadual de Ensino Médio Mario Quintana, no bairro Umbu, Renato conheceu o instrumento que se tornaria o companheiro inseparável. Foi o regente voluntário da banda, Vagner Masera, 31 anos, o primeiro a perceber no menino a vontade de aprender. Focado, o guri se destacava pela dedicação e pelo rendimento nas aulas.
— Ele chegou pedindo para aprender saxofone, mas não tínhamos este instrumento na banda. Prometi, então, que o presentearia com um trompete. Ficou semanas me cobrando. Quando recebeu, tocou a primeira música em sete dias — conta, orgulhoso, o professor.
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FOTOS: de Alvorada para Europa
Quando não estava na escola, Renato arranhava as primeiras notas dentro de uma kombi velha nos fundos do pátio. Com o tempo, mais experiente, ganhou o banheiro da casa da família para os ensaios e começou a conquistar prêmios de destaque em apresentações da banda.
Escola da Ospa quase por acaso
No início de 2015, ao acompanhar a namorada Hechiley Maraya da Silva, 17 anos, na primeira aula do ano da Escola de Música da Ospa, onde ela toca eufônio, Renato, sem querer, acabou se tornando aluno. Como o professor não o conhecia, o incluiu na turma.
— Ele apenas perguntou que instrumento eu tocava. Respondi. Não deu tempo de dizer que não fazia parte da turma, e estava entre os alunos. Meu amor pela música e o desejo de aprender me fizeram continuar frequentando todas as aulas, sem ele saber que eu não era matriculado na escola. Um mês depois, me sentindo culpado, contei a ele a minha situação. Expliquei que pretendia participar do teste de admissão. Não estava fazendo algo ruim para alguém, só queria aprender. Ele me perdoou e disse para tentar a audição. Acabei passando e entrando. Desta vez, de verdade — revela.
Poder transformador
Disposto a seguir na escola, Renato começou um estágio na banda marcial de Nova Santa Rita. Com o dinheiro, pagava as passagens para frequentar a Ospa. Depois, se tornou mariachi (músico de banda típica mexicana) num restaurante em Porto Alegre, conciliando o trabalho até madrugada com as aulas no Ensino Médio e de música. Em meio à agenda atribulada, todos os horários livres eram dedicados ao trompete. No início de 2017, focado em tornar-se um profissional do trompete, o jovem deixou o trabalho para dedicar-se exclusivamente ao estudo. A evolução e o refinamento deram resultado até em casa.
— Ganhei o horário nobre da minha casa. Agora, tenho a sala. Às 21h, posso chegar e tocar, que serei bem recebido — comenta, entre risos.
Quando o questionam sobre o motivo de ter escolhido a música, Renato resume:
— Sou de Alvorada, uma das cidades com maiores índices de violência e carência no Rio Grande do Sul, e estou aqui pra te dizer que de um lugar com uma realidade de vida dura podem surgir grandes sonhos. A música tem um poder transformador incrível e através dela tudo é possível!
"Ele tem uma musicalidade impressionante!"
Integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e professor de Renato na Escola de Música, o trompetista Tiago Linck impressionou-se com o talento nato do jovem no teste feito para ingressar na instituição.
— Durante a prova, já percebi que se tratava de alguém especial. Ele tem uma musicalidade impressionante, acima da média. Ele absorve tudo de imediato — resume.
Para Tiago, a determinação e a disciplina são as marcas do pupilo. O professor acredita que, se Renato conseguir viajar para a Bélgica, tem grandes chances de seguir na Europa depois da finalização do curso.
— A bolsa de estudos ampliará os conhecimentos dele. Espero que o Renato permaneça na Europa depois dos primeiros oito meses. Vejo ele cursando a faculdade de Música e tocando numa grande orquestra europeia — finaliza.
Para ajudar
* A vaquinha virtual pode ser acessada neste link: bit.ly/2fwfVox.
* Renato calcula seus gastos em R$ 33,2 mil, contando alimentação, alojamento, passagens aéreas, seguro saúde, transporte público e metade do valor do curso.
* Até a tarde de ontem, já haviam sido arrecadados R$ 8,7 mil.