Na sala pequena e decorada com desenhos infantis, a pediatra Maria de Fátima Géa chora emocionada ao relatar a rotina de dedicação e cuidado que a orgulha tanto, mesmo que nem sempre tudo saia como almeja ao seguir diariamente para o trabalho no Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil (Crai).
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O local, no sexto andar do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas (HMIPV), em Porto Alegre, atende crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Todos os dias, a missão de Maria de Fátima, além de prestar o auxílio em saúde, é garantir conforto aos que têm a infância violada.
– Infelizmente, é um leque de situações. Vemos de tudo aqui, mas a gente faz o possível para que o atendimento seja feito da forma mais carinhosa e acolhedora possível – conforta-se.
A emoção que aflora na médica e as mensagens de agradecimento deixadas pelas crianças nas paredes dão indícios de que por ali há comprometimento. Por conta disso e de uma série de medidas adotadas no ambiente de atendimento que o Crai/HMIPV tornou-se uma das referências nacionais para enfrentamento da violência sexual infantojuvenil.
A experiência gaúcha figura em uma das três publicações lançadas pela Childhood Brasil para auxiliar gestores públicos a colocar em prática a lei 13.431/2017. A organização faz parte da World Childhood Foundation (Childhood), instituição internacional criada pela rainha Silvia da Suécia que trabalha na promoção de políticas públicas de proteção à infância.
Um dos pontos da lei, sancionada em abril, é a criação de centros de atendimento integrado, em que se estabelecem ações e garantias que evitam a revitimização pela repetição do testemunho das vítimas em processos de investigação e judicialização.
– Observamos que, quando uma criança ou adolescente entra na rede de atendimento, ela é ouvida de oito a 10 vezes. Em todas essas vezes, ela tem de rememorar a violência que sofreu. Então, ela acaba sendo retraumatizada – explica Itamar Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil.
É neste ponto que o Crai/HMIPV se torna uma referência. A criança ou o adolescente violentado encontra por lá desde o atendimento médico especializado a exames de perícia e um posto da Delegacia de Polícia para Crianças e Adolescentes (Deca) para que a ocorrência seja registrada. Disponibilizando esses serviços em um só lugar, evita-se uma romaria pelos órgãos responsáveis pelo tratamento das vítimas e pela investigação dos crimes. Os profissionais também são capacitados para acolher e ouvir as crianças, e o Crai/HMIPV é um dos poucos do país que contam com perícia psíquica, valiosa para comprovar abusos que não deixam marcas físicas nas vítimas.
– O abusador tem interesse em manter aquela relação de abuso. Então, ele sabe muito bem o que tem de fazer para não deixar pistas. A perícia psíquica é a ferramenta que temos para comprovar a violência nessas situações – diz a coordenadora do Crai/HMIPV, a psicóloga Eliane Soares.
Atualmente, o espaço registra, por mês, cerca de 150 casos e aproximadamente 2,5 mil atendimentos. O trabalho de médicos, psicólogos, assistentes sociais e legistas é organizado para que a vítima não precise relatar inúmeras vezes a violência que sofreu e também para que ela e a família consigam resolver as questões burocráticas dos registros policiais sem precisar peregrinar por diferentes locais, o que pode comprometer o atendimento.
– Sou perito e não prescrevo medicação. Se percebo lesões mais graves, tenho o pediatra aqui do lado para encaminhar. A criança também não precisa ficar em filas e percorrer vários lugares para fazer os exames. Essa proximidade dos serviços nos poupa meses de trabalho – avalia o perito médico legista Kleber Cardoso Crespo.
A assistência prestada no Crai/HMIPV por vezes extrapola as ações protocolares. Como os procedimentos clínicos e policiais exigem horas, não raro as famílias que chegam de outras cidades têm pouco ou nenhum dinheiro para se manter na Capital. Nessas situações, os profissionais se mobilizam para assegurar ao menos um lanche. Para as crianças mais pobres, doam roupas e sapatos e até brinquedos.
– Elas saem daqui aliviadas. O maior sofrimento de crianças vítimas de violência sexual é sofrer em silêncio – diz Eliane.
Apesar do empenho dos profissionais que atuam no Crai/HMIPV, a demanda tem sido cada vez maior.
– Precisaríamos de outros Crais, porque já temos crianças viajando demais para chegar até aqui – conta Eliane.
Por conta dessa realidade que a Childhood está apostando nas publicações recém-lançadas para que os municípios coloquem em prática os centros integrados de atendimento previstos na lei 13.431/2017. O material está sendo disponibilizado aos gestores públicos com apoio da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) e do Unicef, com o propósito de estimular a criação desses espaços em pelo menos 400 cidades brasileiras. Além de ampliar a rede, a iniciativa também quer aprimorar as experiências que já existem, promovendo uma metodologia de atendimento unificada e nacional. As orientações da Childhood Brasil foram baseadas em projetos de enfrentamento da violência sexual na infância nos Estados Unidos e na Suécia.
– Temos boas práticas no Brasil, mas elas ainda precisam ser melhoradas. Não temos, por exemplo, um protocolo único de atendimento, com uma metodologia específica para acolher esses casos – diz Itamar.
Estrutura do CRAI/HMIPV
Saúde
1 psicólogo coordenador
2 pediatras
2 assistentes sociais
1 ginecologista
3 psicólogos
1 assistente admninistrativo
Perícia
Posto do Departamento Médico Legal (DML)
4 legistas
3 perítos psiquiatras
3 peritos psicólogos
1 auxiliar de perícia
Registro policial
Posto do Deca, com um escrivão
Onde fica
Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas (Avenida Independência, 661, 6º andar, Bloco C, Sala 619).
Telefone: (51) 3289-3367
Atendimento: segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. Atendimentos fora do horário podem ser encaminhados ao setor de emergência do hospital, para avaliação. O Crai/HMIPV aceita doações de roupas e sapatos infantis e fraldas
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