Em sua modesta barbearia no bairro Belém Novo, extremo sul de Porto Alegre, Alvaro Cabalheiro de Souza precisa com frequência desculpar-se com o cliente e interromper o corte de cabelo a meio. Deixa a pessoa à espera diante do espelho e se ausenta para preparar uma mamadeira ou atender a outra demanda qualquer de Enzo, o filho de cinco anos.
Nenhum freguês se incomoda. Pelo contrário, todos reconhecem e admiram o esforço que Alvaro faz para sustentar, educar e cuidar de Enzo e também do mais velho, Murilo, uma tarefa à qual se entrega sozinho desde a morte da mulher, ocorrida há um ano.
Em outro ponto da Zona Sul, na Avenida Cavalhada, o microempresário Alexsandro Godoi contempla diariamente, na figura de Luísa, sua filha de 13 anos, o resultado de uma odisseia similar. A menina perdeu a mãe 10 anos atrás e nem lembranças dela conserva. Coube a Alex, em meio ao trauma da perda, assumir toda a responsabilidade pela criação, atrapalhando-se com as sutilezas do universo feminino e muitas vezes tendo de levar Luísa a reuniões tardias com clientes.Como no caso de Alvaro, Alex também costuma ser elogiado e considerado um exemplo paterno.
– Acho que me saí bem. Mas não vou dizer que me saí espetacularmente. Sou um bom pai, mas sempre dá para fazer mais – avalia, modesto.
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O Brasil historicamente sofre de carência da figura paterna. No país, milhões cresceram e crescem apenas sob cuidados femininos, porque é sobre a mãe que a sociedade joga a responsabilidade pelas crianças, porque muitos homens não assumem a paternidade, porque muitos abandonam a família. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011, apontavam naquele ano a existência 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. Conforme o Censo de 2010, do IBGE, 53,5% das famílias brasileiras eram formadas por uma mulher com filhos, mas sem o cônjuge dela.
A experiência oposta, de pais tomando as rédeas sozinhos, é muito mais rara e com frequência está associada à viuvez precoce, como no caso desses dois moradores de Porto Alegre. Envolve circunstâncias difíceis, mas demonstra algo que merece ser celebrado no Dia dos Pais: a grandeza, tantas vezes negligenciada, que há na paternidade.
Não se trata, claro, de recorrer ao clichê surrado segundo o qual esses homens tiveram de ser pai e mãe ao mesmo tempo. Alvaro e Alexsandro foram apenas pais, na plenitude – e isso já é bastante.
No caso do barbeiro de Belém Novo, o desafio começou em julho do ano passado, quando a queda de uma marquise no centro de Porto Alegre matou sua mulher, Tatiane Duarte da Silva, 34 anos. Ela trabalhava em uma padaria próxima. O casal estava junto havia 18 anos.
– Nós éramos muito ligados, os dois. Dezoito anos é uma vida. Mesmo ela sendo uma menina, sempre foi mais responsável, mais madura do que eu. Foi uma vida, um sonho que se acabou. Ficou uma família destruída, na verdade – descreve Alvaro.
O choque foi tão brutal que restaram apenas memórias fugazes do funeral. Alvaro não consegue lembrar-se da presença de ninguém no cemitério, só do corpo de Tatiane. Depois, veio o drama de contar ao filho pequeno sobre a morte. Foram necessários quatro dias até ele reunir coragem para falar com Enzo.
– Eu não conseguia porque... Como é que vou dizer para uma criança de quatro anos que a mãe não vai mais voltar para casa? Eu não tinha palavra. Mas chegava o fim da tarde, a hora em que ela vinha do trabalho, e o Enzo procurava demais a mãe dele. Aí eu disse que ela tinha ido morar com o papai do céu e que agora ela era um anjo, uma estrelinha, essas coisas assim – relata o pai.
O outro filho, Murilo, que à época tinha 14 anos, também sentiu muito, mas reagiu se fechando em silêncio. O trio começou a fazer acompanhamento psicológico. Depois de alguns meses, contudo, o tratamento foi interrompido, porque Alvaro não conseguia mais bancar os gastos com três idas semanais à área central de Porto Alegre.
Também foi necessário mudar de endereço. A casa da família, no bairro Lajeado, havia sido planejada em detalhes e construída aos poucos por Alvaro e Tatiane. Um dos acréscimos mais recentes, o banheiro azulejado até o teto, era um velho sonho dela. Com a morte, o lar virou um purgatório de lembranças dolorosas. Não era possível permanecer. Alvaro alugou o imóvel e transferiu-se para Belém Novo, para o mesmo lugar onde se criou, na vizinhança onde conhecera Tatiane. Ainda hoje, diz, não consegue retornar à casa onde foi feliz com a mulher.
– Se pegar o carro para ir lá agora, não chego na esquina e já estou chorando. Quando ela morreu, tentei ficar lá com os guris, mas era ruim demais. Parecia que ela ia entrar a qualquer momento no quarto. Tudo me fazia lembrar dela. É um mundo que nós construímos juntos, do jeito que imaginamos. Não tinha como continuar lá. Era uma faca no peito todo dia – define Alvaro.
Quando a mulher morreu, ele havia recém largado a profissão de vigilante, exercida por muitos anos, para realizar o plano conjunto de montar uma barbearia. Com os dois filhos para cuidar, não era possível voltar às jornadas noturnas, e restou a Alvaro cortar cabelo em domicílio. Às vezes chegava à casa do cliente, abria a maleta e não conseguia trabalhar, tamanho era o abalo. Tomando remédio para depressão, para ansiedade, para dormir, dava um jeito de seguir adiante, pensando nos filhos.
– Não foi fácil começar um negócio do zero, sem recursos, sem estabilidade financeira, em que eu tinha de cortar cabelo de qualquer jeito, ou não teria o que dar para os guris comerem à noite – relata.
Em março, Alvaro conseguiu abrir numa saleta da casa de Belém Novo a sua acanhada barbearia. É ali que trabalha, com os filhos ao redor, mantendo um olho na tesoura e o outro no que eles estão fazendo. É ele quem arruma a casa, prepara a mamadeira, cozinha para a refeição conjunta na hora do almoço, fiscaliza os temas e estudos, ouve as confidências e devaneios que antes eram compartilhadas apenas com Tatiane.
Uma das maiores preocupações dele é com o impacto que a falta de Tatiane pode ter na formação do caráter e da personalidade dos meninos. Alvaro perdeu a mãe cinco anos atrás, aos 39, e sofre com isso. Fica imaginando como não será para Murilo e Enzo, que experimentaram a orfandade tão cedo. E por isso o pai redobra os esforços.
– Eu penso: o que vai ser da cabecinha deles? Será que vou dar conta? Se eu souber que eles estão precisando de um tênis, de um brinquedo, eu me esforço, vendo uma coisa minha, faço um serviço extra. Posso conseguir. Mas o que machuca mesmo é ver um filho sofrer e tu não teres o que fazer. Dou tudo de mim, dou 100%, tento cada dia ser melhor. Às vezes estou destruído, estou triste, estou sentindo falta, estou vendo meus filhos tristes. Mas tenho de ir à luta. Tenho de ser forte para eles. Tento ser íntegro, correto, honesto, porque quero que eles sejam assim também. E tento sempre deixar vivo na memória deles a grande mãe que tiveram – explica.
Alvaro afirma que a nova realidade é um aprendizado constante, complicada pela necessidade, diante dos filhos, de dissimular o próprio sofrimento. Mas conforta-o que os dois percebam e reconheçam o esforço que está fazendo. O pequeno Enzo, quando nota que o pai derrama alguma lágrima, trata de abraçá-lo e consolá-lo. Repete as mesmas palavras que Alvaro costuma usar para ampará-lo:
– Não chora, papai, que a mamãe está no céu, ela está cuidando de nós.
"Agora é tudo comigo. Como é que vai ser?"
Foi apenas alguns dias depois da morte da mulher que o microempresário Alexsandro Godoi apercebeu-se com clareza da nova e espinhosa realidade que o esperava. Depois de sepultar Catilene Maia de Oliveira, vítima da tragédia com o voo 3054 da TAM, em 2007, ele foi passar um tempo com parentes, em Cachoeira do Sul. Até então, havia atravessado noites sem dormir, em sobressalto, correndo de um lado para o outro, resolvendo coisas. Quando finalmente desacelerou, na casa dos familiares, viveu um momento apavorante:
– Estou lá, olho para o sofá e vejo aquele bebê grande, de três anos de idade. Vejo a Luísa dormindo ali no sofá e então me bate aquele desespero, a noção de que a ausência da Catilene vai ser eterna e da responsabilidade que fica. Vejo aquela criança pequena e percebo: agora é tudo comigo. Como é que vai ser?
Na verdade, a família havia sido cortada repentinamente. Artur, filho de um relacionamento anterior de Catilene, então com 10 anos, foi viver com o pai biológico logo após a tragédia, e de uma hora para outra o lar de quatro passou a ser o lar de dois: um homem e uma menina de três anos. E, no caso de Alexsandro, um homem que deixava a cargo da mulher muitas das tarefas relativas à criação.
– A segurança familiar, os ensinamentos, a educação, nisso confesso que ela era muito mais atuante do que eu. E daqui a pouco não tem mais ela. Eu tinha de dar banho, levar à escola, fazer a comida, cuidados que antes eu não fazia. Eu não estava preparado. Mas o ser humano é capaz de fazer coisas que nem imagina. A gente aprende e se adapta – afirma Alex.
O começo foi muito difícil, reconhece. Luísa acordava durante a madrugada, chorava, abraçava-se ao pai, dizia que a mãe tinha sido comida por um tubarão – a menina associava a cauda do avião, que vira no noticiário de TV, com o rabo do peixe.
– Foram momentos bastante complicados. Eu não podia vacilar. Mas o tempo de certa maneira foi curando as feridas – diz o pai.
Alex acredita que a situação foi mais complicada pelo fato de Luísa ser uma menina. Admite que não sabia deixar o cabelo dela ajeitado como o das coleguinhas de escola e que ela era a menos arrumadinha da turma. Foi só mais tarde, quando iniciou um relacionamento com a atual esposa, Francini Teixeira, que a filha passou a ter um referencial feminino e que se familiarizou com o uso de batons e acessórios da moda.
Um acerto importante foi, nos dias que se seguiram ao desastre aéreo, dar à filha uma cadelinha poodle que havia nascido na véspera da tragédia. A própria Luísa, hoje com 13 anos, reconhece que o animal de estimação ajudou a enfrentar a perda da mãe.
– Para mim, ela era tipo aquela falta que eu sentia da minha mãe. Depositei naquela cachorrinha todo aquele amor que eu tinha. Ela era muito fofa. Eu era apaixonada – conta a adolescente.
Há uns dois ou três anos, a cadela morreu, atropelada. Foi um sofrimento que Luísa descreve como "muito horrível", e a expressão sombria que se configura em seu olhar ao falar do assunto confirma essa dor. Foi nessa ocasião que ela percebeu a dimensão da perda da mãe.
– Caiu a ficha. Me dei conta: se a minha cachorra não vai voltar, minha mãe também não vai.Luísa não tem lembrança nenhuma de Catilene. Evoca-a só por fotos, e sonha em encontrar algum vídeo por meio do qual possa ouvir, conhecer e talvez reconhecer a voz da mãe. Conversando com parentes e amigos, está sempre descobrindo alguma coisa nova sobre ela. Recentemente, surpreendeu-se com a revelação, feita por uma tia, de que Catilene estudava o idioma coreano.
Para o pai, só tem palavras de reconhecimento e admiração.
– O meu pai está sempre comigo, desde que me entendo por gente. Foi pesado para ele. Ele mesmo diz que, no início, não sabia o que fazia. Quando eu era pequena, não tinha essa noção de que era difícil para ele também. Só que um dia perguntei alguma coisa sobre minha mãe e notei a cara que ele fez. Daí pensei: "Bá, o meu pai também sente, e ele sente mais até do que eu". Acho que tentava esconder, para eu não sofrer mais. Ele está sempre do meu lado, sempre esteve. Meu pai é a melhor pessoa do mundo.
Alex confirma que tentava ocultar da filha as próprias emoções, ainda que isso às vezes fosse impraticável, com o intuito de preservá-la.
– Achei que não seria eu botando a cabeça dentro do buraco que resolveria alguma coisa. Precisava reagir, me reerguer, até mesmo porque a figura que serviria de espelho para minha filha era eu. Eu não via outra pessoa a não ser o pai para cumprir esse papel – observa.
A realidade familiar de Alex e Luísa é hoje completamente diferente – e supemoderna. Há três anos, ele teve uma filha com Francini, chamada Lauren. No ano passado, o casal passou a morar junto, reunindo as respectivas proles – incluindo a filha de um relacionamento anterior de Francini, Agatha, 14 anos.
Assim, Luísa tem um irmão biológico por parte de mãe (Artur), uma irmã biológica por parte de pai (Lauren) e uma irmã não biológica (Agatha).
No começo, o novo relacionamento de Alex despertou os ciúmes da filha – o que ajuda a explicar a demora em irem todos morar juntos.
– Nossa, senti muitos ciúmes. Porque meu pai era só meu. Eu brigava com a Francini, com a minha irmã. Era uma coisa louca. Mas agora está todo mundo de bem, todo mundo se ama. Vi que meu pai ser continuar sendo sempre meu pai – conclui Luísa.