Durante 20 anos, o psiquiatra norte-americano Allen Frances trabalhou nas atualizações periódicas do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), considerado a bíblia da psiquiatria. Doutor em medicina e professor emérito da Universidade Duke, ele admite que as revisões feitas por sua equipe, que resultaram no DSM-IV, publicado em 1994, provocaram uma explosão de falsas epidemias de transtornos mentais, principalmente em crianças – como autismo e déficit de atenção e hiperatividade.
Em entrevista por e-mail a ZH, Frances também aponta os "médicos apressados" e a "indústria farmacêutica gananciosa" como responsáveis por uma inflação diagnóstica, que tem feito com que milhões de indivíduos saudáveis sejam prejudicados por diagnósticos equivocados e tratamentos desnecessários.
Leia mais:
Entenda por que o Brasil tem uma "overdose" de farmácias
Conheça uma cidade que não tem farmácia
No final do ano passado, o psiquiatra lançou, no Brasil, o livro Voltando ao Normal (Versal Editores), em que lamenta o fato de estarmos nos tornando uma "população de viciados em comprimidos" e denuncia abusos dos fabricantes de remédios:
– A natureza humana é estável e resiliente. Nunca existiu uma epidemia de doença mental, apenas uma definição mais vaga da enfermidade, que tornou mais difícil considerar uma pessoa saudável. As pessoas continuam as mesmas, os rótulos diagnósticos é que ficaram elásticos demais.
Como nos tornamos uma sociedade consumidora de pílulas?
Desde os tempos do xamã, as pessoas sempre procuraram soluções mágicas para os problemas da vida. As coisas ficaram fora de controle agora porque as empresas farmacêuticas se tornaram traficantes de drogas e os médicos já não têm tempo para realmente conhecer os seus pacientes. A maneira mais rápida de mandar alguém embora do consultório é receitar um comprimido. Cerca de 80% dos medicamentos psiquiátricos são prescritos por médicos de cuidados primários, muitas vezes em poucos minutos.
No seu livro Voltando ao Normal, o senhor diz que muitas pessoas estão tomando remédios (principalmente psiquiátricos) sem necessidade e que há uma inflação nos diagnósticos. Quais são as causas?
A inflação diagnóstica é causada por definições diagnósticas que são muito frouxas, aplicadas por médicos que são muito apressados, pressionados por empresas farmacêuticas que são muito gananciosas.
Até 2021, o Brasil deve ocupar a quinta posição no ranking mundial do mercado farmacêutico. O que poderia explicar esse crescimento?
Eu não posso afirmar com certeza, mas, provavelmente, esse crescimento esteja relacionado com a ação dos fabricantes de remédios combinada com o fato de as pessoas estarem sentindo um estresse econômico, político e cultural.
No livro, o senhor diz que há falsas epidemias de autismo, de transtorno bipolar infantil (TBI) e de transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Como chegamos a isso?
Não fizemos um trabalho ruim no DSM-IV, mas devemos assumir a responsabilidade parcial pela epidemia. No caso do TDAH, por exemplo, testes de campo previam um aumento de 15%, mas as taxas triplicaram com a pressão do marketing das companhias farmacêuticas. A falsa rotulagem é resultado de critérios que foram afrouxados (na revisão do DSM), médicos descuidados, pais preocupados, indústria farmacêutica gananciosa, salas de aula superlotadas e ao fato de que o diagnóstico leva ao pagamento de atividades extracurriculares nas escolas.
Médicos são cúmplices ou vítimas dos fabricantes de remédios? Como conter os excessos?
Alguns são cúmplices, mas a maioria é vítima de marketing agressivo, treinamento insuficiente, muito pouco tempo e pressão dos pacientes por uma solução rápida. Conscientizar pacientes e médicos de que, para problemas leves, os riscos da medicina podem ser maiores do que seus benefícios. Tempo, apoio, diminuir o estresse reduzido e aconselhamento são uma escolha melhor do que recorrer aos medicamentos.